4 de jun. de 2007

Zero Dois

Por Flavia Risi

02. E o cheiro ainda era forte. Há uma semana tinham todos os rostos inchados e vermelhos. Abraços e mais abraços. Pessoas que, brigadas, não se falavam há mais de ano, há uma semana estavam de mãos dadas rezando em uníssono. Meia dúzia fofocava, todos olhavam desconfiados e, como que em pacto velado, sussurravam. Até parece que morto escuta!!!
Sim, este foi o primeiro enterro a que sobrevivi. Primeira vez que via um cadáver ao vivo. Primeira vez que me senti mais forte do que minha mãe e, o pior de tudo, primeira vez que o cheiro de cravos enjoava meu estômago.
Quinze de novembro. Bem no feriado. Todos podiam ir, e foram; menos o padre, que não foi trabalhar ou não quis atender ao telefone. Tivemos que improvisar com um pastor da eucaristia, se não estou enganada... Não entendo muito bem destas divisões... Mas mesmo não concordando com as coisas que ele dizia, diante do silêncio antecedido pelo pedido de participação, li um trecho que pregava: “Jesus é o caminho, é a verdade, é a vida”. Acho que nunca vou esquecer disso.
O caixão era grande. Ela morreu na terça. Neste dia mesmo, a vi repousada dentro de uma caixa de madeira (como é mórbida a palavra caixão e como é impactante ver alguém ali dentro). Do lado de fora da sala tinha medo de olhá-la. Havia uma mulher ornamentando-a com flores e não podia entender como alguém consegue tamanho desprendimento estomacal.
De relance. Um misto de dever e curiosidade me fez olhar para o lado. Eu vi a mão e o nariz. A curiosidade falou mais alto e subi um degrau. Já podia ver a testa, as mãos e o nariz com precisão e as flores. O cheiro de cravo foi como um soco no estômago. Faltavam dois degraus. Como se um vento forte me fizesse resistência, fui aos poucos entrando. AS MÃOS!!!!! Estavam inchadas e brancas. Demasiado brancas. Evitei olhá-las. As pálpebras ainda estavam vermelhas, parecia que poderiam abrir a qualquer momento. Por vezes, inclusive, tive a sensação de ver o tórax e a barriga se encherem de ar. O cheiro e a visão do corpo não permitiram que ficasse ali por muito tempo.
Parecia não ser verdade que minha vó tivesse morrido. Desde que me entendo ouço-a dizer que ia morrer logo, que não duraria. E isso já fazia no mínimo doze anos. Um problema crônico pulmonar fazia com que ela fosse internada freqüentemente. Ela sempre voltava. Eu achei que repetiria. Mas não. Insuficiência respiratória. Os brônquios não tinham força para expelir as secreções, que, alojadas no pulmão, causam inflamações. Duas semanas em coma e vinte e dois tipos de antibióticos testados. Nada segurou os 31 mil leucócitos que subiram aceleradamente.
Roupas, um sapato, um terço e um documento. Cemitério do Catumbi, 15 de novembro. Chegamos lá às dez horas. O enterro estava marcado para as três. As pálpebras já estavam na cor das mãos. Ela definitivamente não abriria os olhos. Também não vi mais o tórax e a barriga se mexerem. O cheiro estava mais forte.
Meu pai apareceu, mesmo separado da minha mãe. Talvez tenha ido mais pelo meu tio que por ela. Quase todos da família foram e Juliana não deu descaso à máquina de coca-cola. Light, claro. Eu tomei uma vitamina de banana na esquina, lugar que descobri (depois de beber) que a chinesa lavava todos os copos em uma mesma bacia com sabão. Água suja com sabão e banana. Se não morri aquele dia, não morro mais.
Três e quinze e o pastor acabou. Faltava fechar o caixão. Decidi não olhar. Apenas abracei minha mãe.
Um buraco mais raso do que eu imaginava, ou melhor, que dos filmes americanos. Talvez fosse até a altura dos meus joelhos, não lembro muito bem. Alguns homens cobriram-na com duas “tábuas” de cimento duro. Discretamente via-se: 02. Alguns matinhos cresciam por ali e o cimento fresco usado para lacrar a sepultura respingou, dificultando a leitura. Ela está entre a 01 e a 03, o que traz a certeza de ser um 2.
Primeiro enterro. Memórias de um amadurecimento e de um luto.
O cheiro dela ainda é forte no apartamento. As roupas e quinquilharias ocupam um espaço já vazio. A bermuda pendurada na porta traz a sensação da rotina.
02 e mesmo assim o cheiro ainda é forte. Talvez um dia passe. Deixe o amanhã dizer.

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