5 de dez. de 2007

Gabriela Maremoto

Estranhos e estrangeiros

Por Gabriela Maremoto

“Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1968, numa daquelas esquinas proféticas, o filósofo Jean-Paul Sartre discursava, no auge do fervor, a favor da revolução e de uma existência mais humana. Um repentino transe de emoção com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula da tarde para me conhecer melhor.” Não se preocupou em saber o que eu teria de matar para acompanhá-la. Eu tampouco o disse, limitando-me a desligar o celular, para o qual Dora ligaria à saída do trabalho. A nódoa de culpa eu limparia depois, se preciso fosse (Paris inocenta-nos todos). Ofereci-lhe um guardanapo, apontando-lhe o canto da boca borrado de chocolate. Ela pegou o guardanapo, tirou uma caneta do bolso, desenhou nele uma boca e, enrolando-o no indicador, tocou-me, com a parte desenhada, o canto direito dos lábios. Mostrou-me o guardanapo manchado com creme de avelã e perguntou se eu fazia questão de guardá-lo, já o metendo na bolsa. Sorri.
Quando voltei do banheiro, ela já não estava à mesa. Olhei ao redor e avistei-a, através da porta de vidro, na calçada em frente, fumando e olhando para mim. Dirigi-me ao caixa para pagar a conta e o atendente informou-me que ela já havia pagado. Saí do café e parei ao seu lado, com as mãos no bolso (era, decerto, o destino menos interessante para as minhas mãos, mas eu receava me precipitar). Perguntou: “Vamos?”. Assenti com o olhar, e me pus a acompanhá-la. Duas esquinas à frente, agarrou meu braço, insinuando que sentia frio. Caminhamos assim, estrangeiros e estranhos em Paris, durante algum tempo, sem nada dizer. Indaguei, a certa altura, se o silencio a incomodava. Respondeu que no início sim, mas que, tendo de conviver com ele, acabou aprendendo a apreciá-lo - “pelo menos”, disse, “faz companhia”. É verdade, respondi, perguntando-lhe, em seguida, aonde estávamos indo. Ela parou bruscamente, olhou-me espantada, como a duvidar que eu não o soubesse. “Achei que você estivesse nos conduzindo”, ela disse. “Deixei que você nos guiasse,” respondi. Sorrimos e, naturalmente, voltamos a caminhar, estranhos e estrangeiros, pelas ruas de Paris.

Morango Cru

Por Flavia Risi

Era suco de morango. Sim, aquela mancha era morango. Ninguém o diria não fosse o forte cheiro da fruta. Era um Miró também. Estava evidente apenas sua metade, a outra jazia na caixa, pronta à mudança. Uma caixa, em cima da mancha, um tapete e o suco de morango, era tudo o que restara dos 7 anos de casamento. A briga do dia anterior havia sido a pior. Sem rebuscamento, sem meias palavras, sem eufemismo e sem respeito. Ainda estou tentando entender como conseguimos nos ferir assim. Já passa das cinco da manhã, pelo menos é o que me diz o velho relógio da estante, pois, a julgar por mim, diria que jazia dias ali, no chão da sala que não mais minha sentia.
O tapete eu quero! Lembro-me tão bem da compra dele. O primeiro item da nossa sala. Foi no dia seguinte da festa. Resolvemos por não viajar em lua-de-mel para poder mobiliar nossa casa, e assim feito, nos perderíamos em Fernando de Noronha. E como nos perdemos... Mas não vem ao caso agora. Estava... No tapete, sim... No tapete. Manhã de 05 de junho de 1999, acordamos pela primeira vez em nossa casa. No quarto, apenas o colchão e uma arara para pendurarmos as roupas. Havia também, ao pé do colchão, uma bandeja com quase nada do que sobrara do delicioso café que recebi na cama. (Ah! Como queria que a emoção do amor que em mim vivia se repetisse a todo dia...). alguns beijinhos mais e já estava pegando minha bolsa para, rumo à loja, comprarmos o tapete de que tanto tínhamos gostado. A loja ficou de entregar na manhã mesma da compra, afinal, eram apenas dois quarteirões. E assim que saímos, os entregadores saíram também.
Cru. Sua cor: cru e sua textura felpuda. Muito felpudo. Macio. Pisávamos em nuvens. E nelas também nos amamos. Sim, foi uma estréia e tanto! Não a imaginaria depois da noite passada, mas o amor nos revela e surpreende. Acho que o eco da sala nos inspirava! Inesquecível este tapete. Não vou dizer que todos os outros, sofás, bar, bancos, mesas e cadeiras, foram assim estreados, até porque meus amigos depois de aqui o lerem talvez se sentissem constrangidos, pra não dizer pior! Mas o tapete eu digo, significa para mim todo aquele amor do inicio, toda aquela emoção que gostaria que se repetisse e não se repetiu.
O Miró também era especial. Pra dizer a verdade, não era um autentico quadro dele, mas a todos que assim exclamavam respondíamos com um silêncio sucedido por um leve sorriso, quase que em consentimento. Porém, não o dizíamos e assim não o mentíamos. O quadro era tão importante para nos que a sua história apenas nos pertencia. Foi um trabalho em conjunto, à quatro mãos. Durante um fim de semana, apenas naquele, pintamos e nos pintamos. Uma dessas experiências “divinas” que presenteamos, um ao outro; Talvez tenha sido o dia de maior união, onde corpo e alma se harmonizam, e neste caso: eu com ele, ele comigo. Na hora de assinarmos o quadro, decidimos que ficaria muito grande e feio escrever Anita/Fernando, e como numa brincadeira assinamos Miró. Como rimos! E como riamos da bestidão das pessoas diante do nosso quadro. Ele ficava na sala, numa das paredes que faziam parte da paisagem nas refeições. Nosso “Miró” me trazia a harmonia daquele dia, e sempre me fazia bem olhá-lo.
Na caixa, ao lado de “Miró”, estão também alguns livros e LP´s, sem muita história... Alguns projetos de trabalho e um laptop. A câmera fotográfica fica, a filmadora e os cd´s também. Assim como os moveis e todo o resto que não pus na caixa. Não quero conviver com a lembrança do que perdemos. Para isso já bastam o quadro e o tapete!
Ainda sinto o cheiro do morango. Mas isto foi na briga. Em meio a tantas palavras ladeadas de espinhos e olhares de flechas afiadas, o copo virou, manchando de vermelho nosso felpudo tapete cru.
Decidi levar o tapete, símbolo do nosso amor, e agora, em vermelho, símbolo de seu fim. Sim, o tapete era uma narrativa, em que eram evidentes apenas o inicio e o fim, deixando o meio presente apenas nas lembranças.
Quanto à mancha, decidi por deixá-la. Digamos que é arte-pop e que ao lado de “Miró” ninguém vai estranhar.
Tenho que comprar um microondas, uma geladeira, um colchão e uma vitrola. Tenho também que reaprender a ser apenas eu novamente. Como será não ter com que falar ao acordar? Como será voltar a dormir depois de um pesadelo?
Tento relembrar a sensação da paixão do inicio. Não consigo.
Tento respirar fundo, também em vão.
Tento relaxar no tapete felpudo e um pouco dormir, só.
Fecho os olhos ao sentir os felpos tocarem meu rosto. Penso sentir o cheiro daquele dia. Penso ter sido tudo um sonho. Mas não. O cheiro do morango me traz de volta. Maldita mancha!
O ranger da porta faz meus olhos abrirem. Fernando entra trazendo em seu colo o que ele disse uma aventura, o que eu disse fruto. Era o seu filho. Delicadamente repousam no chão pezinhos que mal se sustentam em pé. Ele cai diante de mim, repousa a pequena mão no meu braço e sorri.

Flavia Risi

1 de dez. de 2007

Cheiros de Infância II

Por Viviane Roux
(texto modificado a partir do original de Flavia Risi)


"Era uma criança palestina. E não era fácil ser uma criança palestina. Minha infância teve cheiro de pólvora, de grito, de sangue.


(Foi mais tarde. Tenha paciência)


Final de 1959. Papai costumava dizer que naquele ano nasceram seus dois filhos. Por algum tempo me perguntei onde estaria meu irmão. Por vezes até o procurei. Quando o questionava, papai apenas sorria, despejando em mim a baforada de fumaça.
Logo o tempo se passou e eu ganhei o que vocês chamariam de padrinho. Não era oficialmente, mas era evidente. E quando se tem Abujihad como “padrinho” e Yasser Arafat como pai, a infância necessariamente cheira a pólvora, grito e sangue."
Nunca recebi um abraço ou qualquer demonstração de carinho por quem quer que seja. Sempre rodeado de pessoas. Jamais relaxavam, sempre alertas. Falavam bastante.
Há muito já desistira de achar meu irmão (mas sabia que estava logo ali, bem debaixo do meu nariz). Algumas coisas são como são. Não tinha nada a fazer. O homem que aceita sua condição e não luta para muda-la, visto que esta é estanque, certamente será feliz. Tentei por muito tempo me conformar. Um dia consegui.
Foram poucas as vezes que papai olhou pra mim antes daquilo. O admirava, gostaria que ele sentisse orgulho de mim (tal como seu outro filho). Para mim não sobrava muito, aliás, quase nada.
À medida que o tempo passava, novas mágoas se uniam as antigas. Raiva. Ódio. De quem seria a culpa?
Tive que me render. Faria meu pai feliz, precisava disso. E de certa forma, tudo mudou depois daquela festa. A casa estava cheia – talvez com mais homens esquisitos do que convidados. Não sei se já havia visto uma de perto antes, mas foi neste aniversário que com certeza vi a primeira arma. Papai deixou que eu a tocasse. Não por acaso ele fez isso, tinha planos e eu ainda não sabia.
Agora, passava mais tempo com ele. Fui ficando importante, respeitado. Apesar de ser tão jovem.
Dez anos. Uma arma. Algumas balas. O cheiro de pólvora. Um tiro. Minhas pernas bambas. Gritos. O amparo daquela mãe a um corpo já morto. O sangue no chão. O sangue na mãe. O cano da arma quente. Os olhos de papai orgulhosos. Uma causa.
Prazer inenarrável. Naquele tiro exorcizei meus demônios. Me juntei a eles. Derramei uma única lágrima, a última de minha vida. Aquela morte levou qualquer sentimento que eu ainda carregava comigo. Frio. Resignado.
Cada um se torna aquilo que é para o que nasce. Eu nasci para ferir. Cumpri meu papel. Cumpro meu papel. E não nego que às vezes gosto dele.
Foi assim a infância toda.
Talvez ainda hoje.

Cheiros de Infância

Por Viviane Roux

Hoje é meu aniversário, embora ninguém saiba. Já vivi tantos dias que esta data não tem nada de especial. Daqui a pouco desço para o refeitório, café com leite e pão com manteiga. Um passeio no jardim mais tarde, quem sabe? Posso ouvir meu velho rádio (ele completa 20 anos comigo). Só o que posso fazer é esperar o amanhã, e assim tem sido desde que cheguei aqui.
A melhor e única companhia têm sido minhas lembranças. Apesar das 89 primaveras, nunca perdi o dom de não esquecer de nada. Como uma máquina que ainda não inventaram, fecho os olhos e consigo viajar no tempo. Revejo o nascimento do meu primeiro filho, volto um pouco e jogo futebol na rua, ainda moleque, avanço e fito o reflexo do meu rosto jovem, nos olhos de jabuticaba de Elvira.
Ontem, algo inusitado aconteceu. Os netos de D.Amélia vieram visitá-la. Enquanto a senhora beijava as crianças, estas se esquivavam para correr pelo pátio. A menininha tropeçou e caiu aos meus pés, soltando o saquinho de pão-de-mel que carregava. Agora, quem tinha os olhos marejados não era só a avó da pequena.
Fui transportado para outro lugar, era bom. Me senti ansioso enquanto um sorriso reforçava as rugas do meu rosto. Aos poucos, um cenário se materializou à minha frente.
Há quanto tempo não pensava em vovó, faz tanto que ela se foi. Até meus 9 anos, o acontecimento mais aguardado do ano, não era natal e muito menos dia de páscoa. Gostava mesmo era do meu aniversário. Sempre pela manhã, vovó Celina me levava à cozinha e preparava uma bandeja de pão-de-mel só para mim. Me contava histórias enquanto eu raspava o tacho, e depois, para meu deleite ficar completo, fazia uma jarra de suco de maracujá fresco. Nós dois comíamos e eu adorava.
Ela nunca esqueceu uma data festiva, tinha o seu jeito de mostrar que cada um era especial. Era gordinha, risonha e quituteira de dar inveja. Desde ontem, não parei de pensar nela.
Agora me recordo da última vez que a vi. Ela estava deitada no quarto, muito doente aguardava a morte chegar, assim como a espero hoje. Apertou meus dedos com suas mãozinhas enrugadas e me fez uma promessa: “Nós ainda vamos nos encontrar”. Confesso que naquela época, passei algumas noites na janela, esperando por uma visita que nunca viria.
Acordei com um sentimento estranho hoje, diferente de tudo que vivi. Ontem, antes de dormir, fiquei um longo tempo abraçado com D.Amélia, minha dos últimos anos, e hoje, não estou com vontade de sair do quarto.
Sinto um aperto no peito e me deito; o meu coração já bateu tanto que anda falhando ultimamente. O aperto está cada vez mais forte. Durmo. Sinto cheiro de pão-de-mel, abro os olhos e vejo vovó Celina, ela veio cumprir sua promessa de tantos anos. Ela sorri, pega na minha mãe e neste instante eu sorrio também. Ela me conduz e caminhamos juntos.

Breves anotações sobre minhas dúvidas

Por Viviane Roux


Denise- MG, 30 de Maio de 2007

Ganhei este caderninho azul de tia Suely no meu aniversário de 6 anos e confesso que na hora fiquei muito chateado. Tio Marco havia me dado um carrinho, Vovó Nilza, uma bola de futebol novinha! E esse caderno não me serve pra nada. Deixei-o embaixo da cama por muito tempo, mas hoje, não sei por que espanei a poeira de cima e decidi usa-lo como diário, igualzinho à menina da novela. Será que só meninas podem escrever?


23 de Junho de 2007

Fiquei quase 1 mês sem escrever aqui e já tinha desistido, mas mamãe me colocou de castigo no quarto o resto da tarde, e não tinha o que fazer. Estou com raiva dela e de Maria Luisa, porque mamãe sempre a protege. Diz que eu não posso bater em Malu, sou menino, mas ela pode me bater porque é menina? Só porque deixei cair água nela. Na hora disse que foi sem querer, mas não foi.
Não é a primeira vez que brigas assim acontecem aqui em casa, e não é a primeira vez também que fico sem entender certas coisas. Nunca entendi, por exemplo, o motivo pelo qual papai foi embora tão cedo, antes mesmo de Malu nascer. Eu tinha 2 anos, não me lembro dele. Mas quando sinto cheiro de uvas, imagino papai descascando-as e colocando em minha boca ainda bebê. Não sei se é recordação ou se crio estas cenas a partir de histórias que a vó conta (sempre quando não tem ninguém perto).
Estou muito triste porque mamãe está desempregada de novo e não poderemos pagar o álbum de fotos da escola. Ela nunca consegue emprego e diz que a culpa é do Lula, que ele prometeu e não cumpriu, mas ela nem o conhece. Disse que por causa dele nunca tem comida aqui em casa e eu não tenho brinquedos. Pedi a ela o boneco do Homem-Aranha, ela chorou e me abraçou.


30 de junho de 2007

Estou sozinho em casa, foi todo mundo procurar um lugar pro Michel nascer. Mamãe, hoje cedo, estava muito nervosa, não conseguiu vaga no hospital daqui do bairro.
Poderia sair pra soltar pipa com os meninos, mas não tenho vontade. Me preocupa isso que ta acontecendo com o neném; antes mesmo de nascer já está passando por problemas, falta de dinheiro, será que é culpa do Lula também?
Queria ter nascido num lugar onde houvesse hospitais muito grandes, que coubesse todo mundo. Igual na TV, mas a vó já me explicou: “Marcelo, o que passa na TV é tudo de mentira, não existe”.

7 de Julho de 2007

Michel nasceu no corredor de um hospital muito longe daqui. Ele é tão pequeno! Chora toda hora, um saco!
Essa noite sonhei um mundo novo pro Michel, nesse mundo o Lula cumpriu o que prometeu e mamãe tinha emprego. O Michel ganhou o Homem-Aranha que eu queria A vovó conseguiu comprar todos os remédios de uma só vez. Malu tinha roupa da Barbie e tudo! Mas eu não estava lá. Acordei. Tenho medo do futuro(mesmo sem saber direito o que é isso, será que a Vó sabe?).

10 de jul. de 2007

Pessoas que habitam em mim

Por Maria Gabriela Raposo

Posso ser quem eu quiser. Mas será que posso ser eu mesma? A menina inocente, ingênua e até um pouco sonsa ou a mulher que paga suas próprias contas do mês e tem muitas responsabilidades.
Posso perfeitamente conversar sobre um assunto que conheço apenas a ponto de dissimular sobre ele e parecer uma expert. Sou até capaz de opinar e formular um ponto de vista naquele momento e sustentá-lo como se já o tivesse sempre pronto.
Posso parecer feliz e distribuir sorrisos apenas para esconder um conflito interno que me deixa triste. Posso parecer triste em busca de atenção ou de um abraço. E todos podemos ser qualquer pessoa. E isso é completamente aterrorizante. Temos a nossa volta diversos neuróticos, fingindo ou escondendo seus sentimentos, agindo de uma forma e pensando de outra. É o fim da espontaneidade, meus amigos! Não falo em fim da honestidade, mas este é o reinado da conveniência.
Por este motivo gosto mais de crianças e cachorros de que de gente adulta. Gosto bem mais dos cachorros até. Já não se fazem mais crianças como antigamente. Elas são perfeitamente capazes de fingir adorar piano, encantar os pais que investirão na compra do instrumento e após duas aulas desistirem. Mas elas terão o piano e o amiguinho não.
Isso sem falar em quanto crianças são seres perversos e egoístas. Eu mesma já convenci um amiguinho, quando criança, de tomar água de uma poça lamacenta. Disse que era Nescau. Esse amiguinho passava por sérios problemas em casa, talvez até estivesse com fome. Lamentável.
Gosto mesmo é de cachorro. Não há comportamentos dissimulados neles. Tenho um cachorro escorpiano com quem nunca tive problemas. Tão diferente das pessoas... Posso chegar com qualquer companhia em minha casa, ele abanará a cauda da mesma forma. Posso estar com o papa ou com o porteiro, ele o cheirará ate deixar a pessoa constrangida e fará seu julgamento. Se não for com a cara, começará a latir ou simplesmente ignorará. Ele é o que é, não age apenas por conveniência. Chamar alguém de cachorro, termo comumente usado como xingamento dos mais ofensivos, deveria ser um elogio. Não gostaria que me chamassem é de “ser humano”.

Reviravoltas e Algo mais

Por André Santos

28/12/2001

Nunca fui muito fã de diários. porém, nessa madrugada insone me veio uma súbita mudança de opinião. Após 2 horas revirando na cama tentando dormir, concluí que eu necessitava desse desabafo. Acho que nenhum parente ou amigo entenderia exatamente a minha angústia. O final do ano se aproxima e sinto uma imensa frustração. sensação de vazio, de incompleto, ao avaliar que mais um ano se vai. Nunca amei ninguém como a Roberta e parece que perdê-la foi o ponto de partida para um desequilíbrio total. Perdi meu emprego, me afastei de parentes e agora me vejo completamente entregue ao álcool. Para falar a verdade, nem sei como estou conseguindo equilíbrio para desabafar. Talvez seja porque ainda está na metade da garrafa de conhaque, talvez porque, finalmente, caiu a ficha. Aos 27 anos me vejo fracassado e no fundo do poço.


02/01/2002

Aqui estou novamente. O “oba-oba” do ano novo me fez perder o foco. De nada adiantou a minha reflexão de dias atrás, volto a desabafar muito mais assustado. A sensação de quase morte pelo uso excessivo de drogas e álcool nos primeiros minutos de um ano é triste, mas não posso desprezar o valor que está tendo para mim. Aquele apagão foi decisivo. Ao assistir ao filme da minha vida e acordar de um coma alcoólico em um hospital público, decidi que a oportunidade de mudar o final não podia ser desperdiçada. E para isso não me basta lamentar, terei que agir. Superei o orgulho e resolvi buscar ajuda. Resolvi também abandoná-lo, por considerar que o diário de um viciado é feio e depressivo.


28/12/2006

Hoje foi um dia realmente emocionante. Me encontro nesse momento impressionado com as ironias da vida e do destino. Você permaneceu muito bem escondido esse tempo todo, foi esquecido. E exatamente 5 anos depois, na véspera da mudança, Sofia (minha esposa) encontra esses relatos. Quanta coisa aconteceu, quanta coisa mudou. Sem nenhum medo de superestimá-lo, finalmente compreendo o seu valor. Foi o ponto de partida da virada, sem dúvidas. Um homem de 27 anos se sentindo acolhido por desabafar com um diário. Sim, é possível. Tá certo que não tinha nada de bonito escrito, mas colocar no papel o que eu sentia foi decisivo para uma tomada de consciência. Depois de 3 meses internado em uma clínica, saí de lá me sentindo uma criança novamente. Reconstruí a minha vida e fiz tudo aquilo que tinha vontade. Aliás, o prazer de voar de asa delta é muito maior do que qualquer droga. Casei, arranjei o emprego dos meus sonhos e aguardo a chegada do meu segundo filho. Ao chegar em casa hoje, estressado, me deparo com Sofia emocionada e o diário aberto. Recebi o sorriso e o abraço mais sinceros da minha vida. Foram apenas 2 relatos depressivos. O suficiente para a reviravolta. Me sinto em dívida com você, mas uma dívida positiva. Passarei a relatar todos os acontecimentos marcantes daqui por diante, e com certeza serão vitórias a maioria. Constantemente voltarei a reler também as suas primeiras páginas, assim lembrarei o significado do aprendizado e o valor de uma vida saudável.


29/12/2006

Hoje o dia foi realmente movimentado. Mudança é sempre assim, não tem jeito. Ano novo, casa nova. Já era difícil morar naquele pequeno apartamento com um filho de 2 anos, agora que tem mais um a caminho tivemos que nos antecipar. Uma casa ampla com um belo quintal será muito mais aconchegante.


30/01/2007

Finalmente sabemos o sexo do nosso segundo filho: Uma menina. Sempre tive aquela apreensão de certa forma machista de que é muito mais difícil para um pai lidar com uma filha. Já imagino meus ciúmes do primeiro namorado. Brincadeiras à parte, tanto eu quanto Sofia estamos muito contentes com a oportunidade de ter um casal de filhos. O nome foi um belo consenso: Vitória.

14 de jun. de 2007

5 de jun. de 2007

Um cheiro de dezembro no ar

Por Mariana Vedder

Em novembro é sempre assim. É quase o calor de dezembro. Mas ainda no clima de dias úteis. Dezembro todo já é natal. Em novembro ainda não temos muitos enfeites natalinos. Nada de laços, bolas coloridas, neve falsa. Não é diferente na Avenida Paulista.
Ao meio-dia – rua lotada, claro; horário de almoço da maioria dos executivos da principal artéria do organismo chamado São Paulo – ele passa. Andando devagar. E aquela gente toda correndo. Muito estranho. Fiquei olhando de dentro da cafeteria mesmo. Um homem comum, mas se destacava, tinha algo intrigante nele. Por que andava por ali como se estivesse passeando pelo Parque do Ibirapuera? O que mais estranhava era o modo como estava vestido. Um sobretudo marrom! No calor de quase dezembro...
De repente, o homem misterioso parou em frente à cafeteria onde eu estava. Minha torta de frango já até esfriara. Tamanha era a minha curiosidade em saber onde ele ia. Seria uma pessoa comum? Ou meu olfato de detetive não me enganara? Ser detetive tem dessas coisas. A gente não consegue mais saber se é paranóia ou se é faro profissional. Dia desses eu me peguei abrindo a maleta de uma senhora. Coitada! Quase morreu de susto. Mas não sei por que, havia algo suspeito no jeito dela.
O garçom trouxe o capuccino. Nem repararia se ele não me cutucasse. E o homem estava entrando no café. Eu sabia! Ele tinha algo nas mãos. Um cigarro, uma carteira... Ah, nada de mais. Devo estar ficando mesmo doido. Minha esposa adora repetir isso. Nunca vi. Droga! O misterioso sentou-se distante. Precisarei afastar minha cadeira para conseguir vê-lo. Ah, céus! Eu nunca me engano mesmo. Um papelzinho. Ele entregou um papelzinho ao garçom.

Por Felipe Han da Costa


Entregou, olhou à esquerda, à direita – como se procurasse algo ou alguém – e saiu apressado. Sim, a intrigante calma fora trocada por uma velocidade avassaladora. O estopim da celeridade presenciada, talvez o papel, olhar do garçom ou ainda um eventual aperto de mãos secreto, era motivo suficiente para eu largar a nota gasta de cinco reais na mesa e iniciar nova investigação.
O meliante trocava passos rapidamente, por sorte eu estava no auge da forma física. Conseguia desviar de todos aqueles pedestres com facilidade. Não fosse o veículo KTF-3576, minha busca terminaria perfeita. Após o meu quase acidente e quase visita ao hospital, o suspeito se distanciava. Mas a sorte era minha aliada, e poderosa aliada ela é.
Adentro o estabelecimento, segundos após o suspeito, cuja lábia confrontara a lábia do engraxate, na porta do lugar. Depois de longe embate, o homem do sobretudo mostrava sinais de cansaço. Não sei ao certo se pela caminhada ou a língua afiada do engraxate. Mas devido o tempo perdido na conversa, pude ver onde entrava. E claro, fui atrás.
O lugar – semelhante ao anterior – freqüentado por famílias de classe média, aparentemente não proporcionava interesse algum a esse tipo de homem. Entretanto, percebi novamente: entrega do papel, olhares desconfiados, saída rápida. Dou um passo para o lado, ficando estrategicamente na porta. Nervoso, ele olha meus olhos, olho os dele. Esbarra em mim e me entrega um papel. Do mesmo padrão dos anteriores. Dizia assim: ‘’recompensa para quem achar meu cão’’. Posteriormente a descrição do animal. E: “Obs: por favor, coloque este bilhete onde todos possam ver’’. Então deixo o restaurante. Novamente estou entre os milhares de desconhecidos da Av. Paulista. Tenho certeza: O sumiço de alguém nesta multidão, mesmo os que têm rumos cotidianos convergentes, não será merecedor de um mero bilhete. Ninguém sentirá falta.

4 de jun. de 2007

O Corte

Por Viviane Roux

Mais uma manhã cinza em Londres, carros jogando uma fumaça espessa no ar pesado da capital, crianças que mal conseguiam andar tal o peso de seus casacos felpudos. Aquelas bolinhas loiras impecavelmente arrumadas, mães de calças de ginástica e blusas quentes, bicicletas indo e vindo a todo tempo. Cidade. Grande. Metrópole.
Elias carregava um café fumegante em uma mão e pela outra puxava a preguiçosa Olívia. Homem alto, imponente, usava um de seus melhores ternos e cachecol vermelho. O rosto liso, bem barbeado e olhos sérios. Há dias que não os pregava.
Tão logo cumpriu a rotina de deixar a pequena na creche às 7 em ponto , se juntou a uma multidão de homens, mulheres e casacos que entravam no metrô. Sua cabeça fervilhava.
Depois de se apertar com dez funcionários no estreito elevador do prédio altíssimo de granito em que trabalhava, chegou à sua sala ignorando a presença de sua secretária Sylvia e seu sorriso branco. O “bom dia” da moça ficou sem resposta, enquanto o homem se afundava na cadeira alta, se escondendo atrás da mesa. Era hoje.
Há muito vinha maquinando uma certa idéia, para ser mais exato, desde o dia em que ouvira sem querer o Presidente do Escritório de Advocacia Sherman comentar que não haveria substituto melhor para o cargo de promotor chefe (ocupação de Mark Mc’Dowell, seu superior direto) do que ele.
Não era novidade que ele era mais competente que Mark, mais inteligente e graduado. Mark caíra ali por sorte e gastava o dinheiro que ganhava com trapaças e jogo sujo, em bebidas, charutos caros e prostíbulos do subúrbio da cidade. Era sozinho, costumavam brincar na repartição que nem cachorro suportava viver com o homem.
Elias sentado em sua mesa, repassou pela vigésima vez como procederia naquela noite. Deixaria a filha dormindo sozinha em casa por algumas horas (três no máximo), era o dia ideal, às quartas a esposa jantava com as amigas. Pegaria o metrô (o carro poderia chamar a atenção dos vizinhos) e certamente chegaria ao apartamento velho de Mark, antes do intervalo do jogo que Mark assistia comendo a mesma pizza de presunto e cerveja quente.


Por Flavia Risi

Tudo fervilhava ao mesmo tempo. Finalmente a arma que herdara de seu pai serviria de algo.
Eram quase cinco quando ele chegou a escola de Olívia. Estava disposto a botar em pratica toda aquela loucura.
Como planejara, aproveitou todos os minutos antes de ela adormecer.
Sem pensar, enterrou a arma na parte de trás da calça, de modo que pôde sentir gelado, o cano há muito adormecido.
Com apenas uma gota de coragem, saiu. O velho Mark o aguardava, e aquilo tinha de ser feito. Era melhor para todos que acabasse logo.
Já passava de 21h30 quando sorrindo entrou no prédio. O tom familiar fez com que não precisasse de identificações. O elevador estava no sétimo andar, o que o deixava tempo demais no hall. Logo logrou o único assunto que o livraria de todas as perguntas: E o timão, como anda?”... Tudo estava resolvido. Agora restavam apenas os vinte segundos que o conduziriam ao nono andar.
Um minuto de campainha e ninguém atendeu. Sabia que estava em casa. Havia o convidado para assistir ao jogo com ele. Por instinto, meio que imitando o cinema americano, Elias tentou a maçaneta. Como nestes filmes, a porta estava aberta. Antes de assim a ter por completo, retirou abruptamente aquele estranho que seu corpo aquecera.
Com a arma em punho, molhada com aquela mesma coragem que lhe escapava das mãos, enfrentou seu suplicio. Sem delongas, atiraria, sorriria e voltaria para casa.
Algo deu errado. O destino lhe sorrira pela primeira vez. Mark estava no chão, nu, cercado por sangue e um lençol amarrotado. Seus olhos miravam, imóveis, algum ponto no teto. Elias correu para certificar-se de que estava morto. Estes poucos segundos foram suficientes para a porta do elevador denunciar uma desagradável surpresa: agora dois policiais erguiam imediatamente a arma em sua direção. Sujo de sangue e empunhando uma arma, o destino lhe deu a ultima baforada irônica.
Olívia. Isabela. A empresa. Outro turbilhão fervilhava em sua mente. O que eles pensariam daquilo tudo... Restavam três segundo para decidir viver ou morrer.
Um estampido surdo.
Um baque no chão.
A porta do banheiro se abre.
Elias ainda pôde ver Isabela sair de roupão. Seu rosto molhado. As mãos, tremulas, deixaram a arma cair. Seu corpo desaba.
Tudo o que restou foram pequenos segundos de olhos vidrados.
Logo tudo acabou.

Um crepe adocicado

Por Mariana Vedder

"Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1968, Jean Paul Sartre discursara, no auge do fervor, a favor de uma revolução e de uma existência mais humana. Um repentino transe de emoção com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula da tarde para me conhecer melhor."

Sorri como há muito não sorria. E ela me conheceu tão bem, que a tarde terminou com um beijo leve. Com gosto de chocolate. Chocolate com avelã e um brilho no olhar.
Estremeci quando toquei suas mãos na despedida. Uma mistura de mistério e contentamento. As famosas borboletas povoaram meu estômago. Eram muitas. Trocamos e-mail e telefone.
Voltei para casa de ônibus. Eu sabia que demoraria mais. Não importava. Retornei minha leitura. Viva Sartre! As sardas do rosto dela não saíam da minha cabeça. Algo como fogo. Que hipnotiza e deixa marcas. E naquela mesma noite decidi ficar em Paris. Mesmo sem saber como seria o futuro.
Chegando em casa, liguei a secretária eletrônica. Apenas uma frase dela: ‘’nos vemos amanhã no mesmo lugar’’. Gostei do jeito como ela me tinha nas mãos a sensatez e segurança. Parecia mesmo saber o que fazia. Parecia ter a solução para o meu caos.
No dia seguinte, cheguei antes na praça. Sentei no mesmo canteiro. E ali fiquei a esperar. Um tempo dolorido arranhava minha garganta enquanto eu esperava. Uma espécie de intuição. Será que confundi o horário? Será que ela já havia passado? Até hoje não sei. E estou aqui na mesma espera. A mesma de 2 anos atrás. Como se o dia seguinte fosse sempre hoje. Os e-mails sem resposta e o telefone que só chama são como seqüelas do meu cotidiano dolorido. Estou sempre aqui à sua espera. Com o mesmo livro de Sartre nas mãos e o mesmo sorriso no canto dos lábios. Agora já contaminado pela calma que só o desespero é capaz de provocar. Estou sempre aqui; com o mesmo lenço que secou seus olhos. E o mesmo transe que nos tornou um só. Pelo menos na leveza daquele beijo adocicado.

Crepe de Avelã

Por Flavia Risi

“Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1986, numa daquelas esquinas proféticas, o filósofo Jean-Paul Sartre discursara, no auge do fervor, a favor da revolução e de uma existência mais humana. Um repentino transe de emoção com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula de tarde para me conhecer melhor”.


Eu disse que não. O que fez ela pensar aquilo? Talvez o fato de ter aceitado comer o crepe. Comecei a me arrepender disso tudo... Sem gaguejar, discursei em falso sobre um artigo, um congresso, trabalhos... Percebi sua íris desvendar minhas mentiras. Já não sabia mais do que me arrepender. A fim de não piorar as coisas, pedi a conta, agradeci-lhe o prazer da companhia e o maravilhoso crepe.
Ela não me sabia virginiano (puro sangue).
Estar fora daquilo era me sentir livre da atmosfera asfixiante. Era respirar seguro.
Certifiquei-me de tê-la perdido de vista antes de mais nada.

Paris. Duas horas após o crepe de avelã.

Respirava tranqüilamente em uma livraria, ainda que o cheiro dos livros me causasse alergia. Folheava os livros, mesmo sentido aquele nervoso nos dedos ressecados no papel áspero, de boa qualidade. E por fim, devorava-os, tentando esquecer minha recusa ao convite.
(certos virginianos acreditam totalmente em acasos)
A porta da livraria rapidamente denunciou um intruso. Reconheci aqueles grossos lábios, proporcionais àqueles olhos negros. Uma súbita falta de ar e uma longa taquicardia.

Paris. Trinta minutos depois de a porta abrir.

Ainda estávamos sentados ali. Ainda por cima, fingindo que acreditara em mim, pedia explicações para minhas desculpas.
Começamos a ouvir gotas lá fora. Era tudo que precisava. Agora não poderia fugir. Seus olhos pareciam mais sedutores e, provocadora, passava conversa molhando os lábios. Será que ela não sabe que isso acaba com virginianos?
Tentava olhar mais os livros do que ela. Começava a respirar de novo. A chuva parou.
Subitamente ela pede a conta. Desta vez foi ela.
Subitamente, sem respirar, pedi que aqueles olhos conhecessem meu quarto de hotel.
Ela disse não. Sorri achando que era brincadeira. (virginianos são orgulhosos).
Sorrindo a vi despedir-se e com o sabor de crepe ir embora.


Paris. Quatro horas depois do toco.

O bar do hotel se faz de lar. Uns drinks. Um jantar. Logo a noite terminaria!!!
“Para você ver... Me parece que nossos destinos não aceitam ”não” como resposta. Um Martini, por favor....”
Mais uma vez aturdido, mutilado, sufocado. Com meio sorriso, pedi o mesmo, com azeitona. Achei parecer mais forte que a cereja.
Pela primeira vez estávamos em silencio. Meus pulmões ainda não estavam confortáveis, por isso acendi um cigarro. O tic-tac foi quebrado quando ela me pediu um. Titubeei. Poderia me vingar da sua vingança. (realmente estava bélico!). Disse-lhe que aquele era o último e, temeroso, ofereci que dividíssemos. Era, dura, forte, deu um trago na minha vez, senti o cheiro da cereja em cima do filtro colorido pelo batom.
Agora, éramos mais íntimos. Poderia dizer que minha boca havia tocado a dela.


Paris. Uma hora depois do cigarro divido.

Estávamos no elevador. Deadline. Matar ou morrer. Normalmente, não importaria. Me conforta pensar que certos virginianos são céticos, e que desta forma, “acasos” não passam de acasos. O destino, como tudo nestas vidas, está sob total controle.
Mas não neste caso.
Normalmente eu respirava.
Agora, não me bastava respirar. Havia me acostumado com as involuntárias faltas de ar. A taquicardia me seduzira.
A viagem não durou mais que alguns velozes segundos. O andar dela chegou antes, e quase a vi sair quando, por precaução, segurei seu braço. “Posso estar sendo repetitivo, mas avista lá de cima e asfixiante”.
Ela aperta rapidamente o maravilhoso botão que faz as portas fecharem.
Falta de ar.
Medo.
Palpitações.
Estava começando a gostar de tudo aquilo.

Algum lugar de Istambul

Por Flavia Risi

Primavera. 20 de maio. Algum lugar de Istambul.

Já faz 13 dias que eu estou aqui. Não sei ao certo onde. Apenas sei que meus joelhos doem. Ainda não sei por que me trouxeram para cá. Era noite quando eles chegaram, e mal deu tempo de esconder o pequeno Yussef. Como será que ele está?
Com armas em punho e rostos cobertos arrombaram minha porta. A parede, feita de barro, não suportou. Pude ouvir os farelos cederem e deslizarem junto à porta.
Mesmo sem reagir, apanhei. Torceram-me um dos joelhos para que não pudesse correr. Mesmo assim não senti dor. Meus sentidos todos estavam em Yussef. Já caída e sangrando, pude me concentrar apenas nas botas. Vi apenas uma caminhar pela sala. As outras duas se mantinham sobre mim. Quem quer que fosse sabia o que queria. Desmontou com uma chave os fundos da TV, e logo em seguida a jogou no chão: - Droga!
Irritados, me levaram para uma picape. Sob a noite, apenas as estrelas percorriam meus olhos, felizes pela segurança do pequeno.


Primavera. 3 de junho. Ainda em algum lugar de Istambul.

27 dias. Faz tempo que não vejo o sol. A claridade me faz saber do dia e da noite. Ainda não choveu.
Meu joelho está com uma cor diferente. Já não sinto a dor que sentia. A papa que me dão de comida traz às minhas fezes um odor terrível. Estou ficando sem espaço e com dificuldades de me mexer. A rótula do joelho bom me parece maior. Acho que emagreci.
Apenas continuo vendo as botas. Não sei de Yussef ou Rarib. Não sei o que me procuram ou esperam. Só o que ouvi é que estou em algum lugar de Istambul.


Primavera. 7 de junho.

31 dias. Meu joelho está latejando. Tenho implorado por ajuda. Estou com medo de perder a perna. Há dois dias não bebo água.
Eles pedem que eu desenhe o mapa de onde está.
Onde está o quê?
Ameaçaram cortar também a comida.


Não sei se já é verão. 23 de junho.

47 dias. Há dez dias eles vêm alternando, dia-sim, dia-não, o prato de comida.
Hoje ouvi a voz de Rarib suplicando por algo. Arrastei-me até a porta e lhe colei o rosto. Não consegui ouvir mais nada. Gritei por socorro, o chamei, esmurrei já sem forças a porta. Inútil.
A ponta dos meus dedos do pé começava a ficar enegrecida.
Queria poder saber de Yussef. Queria abraçá-lo e protegê-lo.


30 de junho.

Tenho febre. Não tenho certeza da realidade. Pareceu-me ter ouvido um tumulto.
Um tiro! E a porta se abriu pela primeira vez em 54 dias.



Por Viviane Roux*


Faço forca para abrir os olhos, delírios febris se misturam com o que parece ser real. Meu corpo treme de frio, minha cabeça parece querer fugir dali, me esforço para que fique.
Perco os sentidos.


7 de julho.

Passei a última semana indo e voltando de um sono profundo. Lembro de um homem alto, másculo, com o rosto coberto por um pano preto e imundo, me sacudindo pelos braços.
Lembro de chamar por Yussef, de vê-lo brincando no gramado verde dos jardins. Outro homem, não vejo seu rosto, só ouço sua voz grave. Discutem em uma língua que não conheço. Vejo Yussef, adormeço de novo.


11 de julho.

Estou acordada há três dias, a dor me mantém alerta. Chego a gostar dela, me faz sentir viva.
Passo o tempo cantando velhas canções de ninar, não trazem mais comida, não ouço nada, fui esquecida nesse buraco.

Quando fecho os olhos, vejo minha casa, minha família, um prato quente e água fresca.
Explosão. Bomba. Tão perto, medo. O que será?

Sinto a dor aumentar, não vou resistir.


20 de julho.

Abro os olhos. É tudo branco. Sinto cheiro de álcool e a claridade é tanta que demoro a me acostumar com ela.
Se existe paraíso, ele é claro e silencioso como onde estou agora.
Alguém se aproxima. Quem será?


23 de julho.

Sinto uma mão quente segurar na minha. Yussef. Vejo Rarib atrás dele e seu sorriso calmo, há uma cicatriz em seu rosto, mas ele me parece bem.
Não sinto a perna direita, tento me mexer mas sou impedida por Rarib que sussurra em meu ouvido: “Agora está tudo bem”.
Meus olhos se enchem de lágrimas.


Verão. 25 de julho.

Já consigo sentar e uma mocinha de branco coloca lentamente uma fruta incrivelmente doce na minha boca.
Tenho a certeza de que acabou.
Muitas perguntas a fazer, mas Rarib se recusa a dar respostas, talvez porque nem ele as saiba.
Estou tranqüila.
Quero voltar para casa.

Cuba

Por Felipe Han

28 de Abril / 05

Hoje, completo duas semanas em Cuba. A oportunidade de cursar medicina em Havana foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Apesar dos problemas óbvios, sinto pela primeira vez a sensação de produzir algo realmente importante. Tenho saudades, porém espero abafá-las por um propósito maior



15 de Maio / 05

Estou me sentindo bem, quero deixar claro. Entretanto, a vida aqui não é exatamente como eu esperava. Já estava acostumado com a pobreza das favelas do Rio. Achava – talvez por ignorância – encontrar algo muito melhor. Mas vejo crianças pedindo esmola a turistas, como na cidade maravilhosa. Não posso esquecer uma coisa: educação e saúde estão em um patamar de qualidade superior ao brasileiro.



23 de junho / 05

Minha dedicação à faculdade consome todo tempo livre. Manhã, tarde e noite. Gostaria de conhecer profundamente Cuba. Infelizmente agora não há tempo. Isso seria bom para me fazer esquecer um pouco as lembranças do Brasil, que só aumentam, junto com a descoberta de novas semelhanças entre estes dois países.



28 de junho / 05

Quero ligar, mas não tenho grana. Sou pura aflição, sem notícias dos meus queridos amigos e parentes. Será que papai consegue lidar com a diabetes ? Ronaldo e Ana já casaram ? Rogério passou no vestibular ? Mamãe conseguiu o emprego ? Meu cachorro ainda sente saudades ou será que me esqueceu ? Droga, não consigo estudar com tantas dúvidas na cabeça.



29 de Junho / 05

Eu deveria preocupar-me com coisas mais importantes.




Por Mariana Vedder*

Eu deveria preocupar-me com coisas mais importantes. Se bem que agora é difícil identificar o que é, de fato, mais importante. Interiormente falando, sinto-me confuso, bem e mal. Bem por estar aqui, realizando um sonho. Mal pela saudade. Sempre ela: palavra que só existe em português.



30 de junho /05

Antes eu nem ligava se escrevia ou não meus pensamentos. Mas a sensação de estar longe me aproximou da caneta e do papel. Tomara que isso seja bom. Mais um dia sem estudar o quanto deveria. Isso é que não é bom.



06 de julho /05

Prometi a mim mesmo: uma semana sem tocar neste diário. Consegui...
Até Consegui estudar também.



07 de julho / 05

Hoje consegui passar por Havana. Nossa ! Este lugar é um imenso outdoor da revolução de Fidel. E uma placa maior ainda contra os EUA. Chega a ser exagero. Mas é claro que meu olhar é contaminado porque nem sou daqui. Mas já não sinto tanta falta da rotina carioca. Mas saudade eu sinto. Até escrevi uma carta para mamãe. Pra outras pessoas também, mas não enviei.



13 de julho /05

Amanhã meus pais fazem 30 anos de casados. E amanhã também faz 3 meses que não ouço meu próprio sotaque, minha própria língua, a voz de alguém conhecido.
Cuba e Brasil se parecem demais.

Saudades deles, daqueles, dela...



10 de agosto /05

Quase um mês sem escrever. As férias se aproximam e não tenho dinheiro para ir ao Brasil. Voltei a pensar em Juliana. Não devíamos ter terminado. Amo muito essa mulher (a conheci menina, eu também era um menino). Soube que ela vai se casar. Por isso me afastei dessas notas. Um pouco de depressão por não poder mudar nada.



15 de agosto /05

Faltam 30 dias para o casamento de Juliana. Ainda sofro. Mal estudo. Mamãe me ligou de tarde. Quanta saudade. Será mesmo que vale a pena? Só penso nela... Estudar aqui será mesmo o melhor de minha vida?



01 de setembro /05

Não sei se vou conseguir. Mas pretendo esquecer Juliana. Meus pensamentos não me deixam reagir. Tenho prova amanhã: anatomia médico-cirúrgica. Não posso me dar mal.




07 de setembro /05

Dia da independência do Brasil. E da minha também. Preciso estar livre para viver ! Vou voltar para o Brasil. Juliana não pode se casar.



14 de setembro /05

Cheguei ao Brasil. Decidi largar tudo. Não vale a pena viver sem amor. Juliana se casaria amanhã.



15 de setembro /05

‘’Meu amor,
Não poderia ter sido tão feliz o dia do meu suposto casamento. No fundo, bem no fundo, eu estava te esperando. Nunca na minha vida eu tive tanta certeza de uma coisa: o nosso amor. Eu sempre soube que você viria me buscar.
Obrigada por me salvar da enrascada onde eu iria me meter. Obrigada por fazer valer a pena esses 5 meses de espera.

Nunca deixei e nunca deixarei de ser sua. Pra sempre...


Juliana’’

Re: Dólares. Brasil.


Por Inês Nin


Como é bom receber notícias suas. Aqui em Porto Alegre as coisas não são vistas de modos muito diferentes, mas devo dizer que mantenho o bom-humor. Daquela época até hoje muita água rolou, e minhas ilusões permaneceram somente ilusões, que ilustram as utopias e também a ingenuidade de tão saudosa etapa da vida. Você e todos os que faziam parte da minha vida naquela época ainda me são de certa forma muito presentes, como uma parte de mim que representou grandes esperanças e desejos, juntamente com umas tantas descobertas.
Ao mesmo tempo, devo dizer que admiro muito mais a pessoa que sou hoje. Se naquela época não havia como sermos muito diferentes, uma vez que as cores todas pareciam vivas e definidas, hoje vivemos uma época de nuanças, disfarces, e como conseqüência disso tudo, descrença. Mas, justamente por isso, me parece que viver nestes dias de incertezas e decepções é de fato muito mais complexo e, por isso, de algum modo enriquecedor.
Talvez a única coisa que se possa ver com clareza é que as nossas utopias falharam, todas, o que demonstra, ainda que com o peso das descobertas, que acreditávamos poder dar soluções relativamente simples à coisa mais complicada, que é a política. E, claro, conseqüentemente, às nossas vidas.
Se viemos de um tempo em que usar drogas representava a “liberação da mente” e nos era uma subversão contra o sistema, hoje se pode notar que os jovens que ainda encaram a coisa da mesma forma nos parecem perdidos, completamente perdidos. Seria isso um sinal da idade? Creio que não. Aos 36 anos, mesmo estando perdendo cabelos a uma velocidade assustadora (tenho procurado aceitar o fato de que, sim, herdei um gene recessivo que me acabará com os cachos, antes mesmo de perderem a cor), seria idiota pensar da mesma forma. Minha calvície não vai deixar de acontecer porque eu não a desejo, e esta, como umas tantas coisas, temos que aceitar.
Tenho muita vontade de poder revê-los assim que possível, e conhecer a tua menina! Uma filha de vocês dois só pode ser a criança mais adorável; foram os largos sorrisos de ambos o que permaneceu mais claramente impresso aqui na minha memória. Me deixa alegre saber que ainda estão juntos.
Eu, por aqui, estou solteiro desde o rompimento com Olívia, gostaria que você pudesse tê-la conhecido. Após oito anos, a relação simplesmente se desfez, e quando ela veio comunicar-me que iria fazer doutorado na França, apenas a deixei ir. Há coisas e pessoas na vida, que, descobri, temos é que deixar passar. Não conseguiria me imaginar agindo de outra forma.
As coisas aqui não andam muito fáceis, mas tenho me surpreendido diariamente com uma vontade de viver efervescente. Sinto-me disposto a resolver os maiores problemas da maneira mais simples e, até agora, tenho sido bem-sucedido. Quando leio os jornais, confesso que um ceticismo me toma freqüentemente, mas ele não ocupa todo o espaço. Até entender para onde vai todo esse lamaçal, observo apenas, e cuido do que está ao meu alcance. O meu voto hoje é nulo, Augusto, e já é despreocupadamente que te afirmo isso. Nossos parâmetros não podem ser os mesmos que antes. Todas as fórmulas que foram inventadas – está provado – não surtem mais efeito.
É com uma saudade gostosa que me despeço. Prometo ir ao Rio assim que possível! Há tanto a (re)ver por aí. E por tudo é que te digo: concentre-se nos sorrisos. O resto, depois descobriremos.



Grandes abraços,
Tonico.

Re: Re: Oxaca

Por Mariana Vedder


Oaxaca, 6 de dezembro de 2006.


Juju, minha amiga,

Sua carta me deu vontade de chorar. Pensei em você ao meu lado fazendo cócegas na minha cintura para me fazer rir. Uma lágrima teimosa escapou do meu controle e caiu neste papel. Quando o envelope estiver em suas mãos a gota já vai estar seca. Mas meus olhos estão sempre marejados durante as horas em que fico na companhia das lembranças de nossos melhores momentos.
As coisas aqui às vezes me parecem sem solução, apenas me conforto (eu e todos os militantes) com o apoio que recebemos de tantas pessoas pela América Latina afora. Me emocionei com os dados detalhados da sua descrição. Noto que, ao contrário do que insiste o governo em mostrar, muitos brasileiros já desistiram. E com eles se foi a esperança. O que falta ao nosso povo é justamente ela: a esperança. Mas uma esperança projetada para o coletivo. Porque fé na vida, em Deus, Oxalá, ou em si próprios, isso os brasileiros têm de sobra.
Agradeço muito pelo seu empenho e lhe certifico de que não esperava menos de você. Sempre tão responsável, ativa, talentosa. Tinha a mais absoluta das certezas de que poderia contar com os meninos, mas, principalmente, com você.
Não só me lembro das manhãs em que prometíamos, sem sucesso, acordar mais cedo no dia seguinte, como me recordo também de outra jura que jamais cumprimos: a dieta de segunda-feira. Não se preocupe com meu gatinho. Provavelmente ele está na casa de Aline ou Priscila junto com os gatos delas.
Mal posso esperar pelo nosso inverno! Vai ser perfeito assim como todos os outros desde o ginásio.
Guto não respondeu à minha ultima carta. Imaginei mesmo que fosse acontecer desta maneira. É complicado parar alguém estável como ele – bem o oposto de mim – entender que 6 meses não são 6 dias. E que “no balanço das horas tudo pode mudar”. Amo-o demais para prendê-lo durante tanto tempo. Converse com ele, ninguém melhor que você para me representar. Faça-o ao menos dizer que me perdoa e que, quando esse tempo passar, seremos de novo o casal de revolucionários mais bonito. Já que foi você mesma que nos chamou assim, lembra? Não quero magoá-lo.
Encerro a carta tentando te mostrar minha saudade que aumenta a cada dia.
Uma única frase traduz isso:
Amo você eternamente!
Beijo de esquimó,
Mari :-)



Re: Oxaca

(Para ler a carta anterior: http://textosoficinauff.blogspot.com/2007/06/re-oxaca.html)

Por Juliana Risi
Querida Mari,

Só tive sua carta em mãos no dia 8 de novembro. Acredito que você tenha colocado o CEP errado. Fui ao correio reclamar, afinal, disse-me no e-mail (com as fotos) que havia mandado em outubro.
Desculpe os vinte dias de atraso. Sabe como anda minha vida! Mostrei sua carta para os meninos. Estão cada qual mais Zapata. O que você – nem tampouco eu – imaginaria é a proporção alcançada pelo seu pedido, o que ajuda a explicar a demora da minha resposta. A esquerda e os nem tão esquerda assim se empolgaram com a causa. E vai além! A fecilidade da comunicação proporcionada pelos meios fez com que grupos de todo o Brasil se mobilizassem. Agora, contam-se 15 mil integrantes que participam de manifestações em frente aos consulados do México. A parte mais emocionante vem agora: parte dos grupos está planejando uma ida ao México, exatamente para a virada do ano. Querem transformar o reveillon em uma espécie de caos. Conto com sua ajuda também. Alem do mais, poderemos nos ver e trapacear a saudade. Imagine milhares de brasileiros na Praça Central! Parece-me que o povo já está tão desesperançado dos problemas daqui que buscou uma causa não-perdida para lutar. Afinal, quando Collor, Maluf e até Clodovil (que deixa de ser piada depois dos outros dois) se elegem, instala-se a sensação de cansaço e desesperança.
Confesso, pois, que minha viagem se justifica por sua causa. As aulas sem você me soam estranhas, apesar de todo aprendizado, claro. Paula, Ana e Camila? Não... Cansei de “patricinhas” imóveis para não desfazer o cabelo. Eva e Angélica? Evangélicas, não me suportariam “pecadora”. Edith e Júlia? Passam o dia em casa. Não saem, e além do mais, detestam futebol, delicadas demais para correr, podem até quebrar as pernas. Cassandra e Ed? Brutas demais – acho que me quebrariam as pernas! Não tem ninguém nesta turma, Mari. As caricaturas dos professores, a vontade de mudar o lugar em que vivemos, o sorriso instantâneo e involuntário do nosso encontro... Faltas nunca findas de uma amizade indescritível a uma distância desarvorada.
Lembra-se de toda manha?\uma corrida desesperada até o ônibus e uma promessa ofegante: “a partir de amanhã vamos levantar mais cedo...” E a volta? Sem a minha companheira de ônibus...
Já arrumei uma menina para ocupar seu quarto, assim não pago sozinha. Calma! Por seis meses, eu sei! O plano para o inverno permanece, e a entrevista com Aparecida Moraes – como havia pedido – já está marcada.
No mais, vou levando... “a vida segue sempre em frente, o que se há de fazer??”
Seu gato está sumido desde a sua partida. Coloco leite toda noite para ver se ele volta, mas é sempre um malhado malandro que se aproveita.
Eu, Guto e Caco só falamos em você. Acho que faz parte do nosso “luto”. E claro, eles também confirmaram os planos de julho.


“Passa tempo
bem depressa,
Não atrasa,
Não demora”

Vinicius de Morais

Seis meses. Desde o ginásio juntas e pela primeira vez ficamos longe.
Minha melhor amiga, recolhida do mundo, à pinça, para entrar no baú dos grandes amigos.


Sinto saudades...
Abraços e beijos na bochecha,
Juliana


Oxaca

Por Mariana Vedder


Oaxaca, 20 de outubro de 2006.

Querida Juliana,

Já estou com saudades de todos aí. Não sabia que seria tão rápido! Em três dias sinto falta de cada detalhe do Brasil. As pessoas aqui no México são bem receptivas com os brasileiros. Principalmente de estudante para estudante. Tudo é muito bonito, as flores nas feiras, as roupas das mulheres, os artesanatos. As crianças fazem cavalinhos e uns guerreiros de retalhos, uma delas me disse q são os líderes do Movimento Zapatista. Lindo, né?
Mas nem tudo anda tão bem por aqui, Ju. Esse povo precisa de apoio. Ontem fiquei muito assustada, mal pude voltar para o hotel. As ruas estavam tomadas. As pessoas gritavam palavras de repúdio ao governador, carregavam faixas contra a corrupção. Vou tentar te explicar o problema:
Aqui em Oaxaca, existe um local onde periodicamente ocorrem assembléias populares. Nessas assembléias são discutidos os assuntos ligados ao governo. Em uma delas houve a proposta de retirar o atual governador do poder por vários motivos, e a proposta foi acatada. No entanto, o governador não aceita a decisão do povo, se recusa a sair. E isso não é tudo! Para completar, o candidato que assumirá a presidência no ano que vem (que é de direita) foi eleito com fraude. O povo está nas ruas exigindo justiça, gritando o nome do verdadeiro vencedor: o candidato de oposição, Obrador.
Meu objetivo ao lhe escrever esta carta é deixar você a par de tudo isso, já que os principais veículos de comunicação se recusam a noticiar tudo isso. Preferem apenas chamar as pessoas de baderneiras. E também gostaria de poder contar – sei que posso – com o seu apoio para mobilizar as pessoas da UFF, demonstrar o apoio à causa. Os mexicanos, para continuarem lutando, precisam saber que não estão sozinhos!
Bom, vou me despedindo por aqui. Acho que já te enchi demais com isso. Vou enviar fotos por e-mail. Espero que esteja tudo bem por aí.

Um grande e saudoso abraço seguido de um beijo na bochecha.



Mari :-)

Leia a resposta da carta em: http://textosoficinauff.blogspot.com/2007/06/re-oxaca_04.html



Como atuar politicamente nuna época de alienação?

Por Inês Nin

A alienação é necessária. E se não necessária, ao menos compreensível. É somente aparência, também, em muitos casos. Vem da descrença. E do estímulo ao não-pensar. Da rendição a uma realidade que nada, aparentemente, podemos fazer para mudar. Alguns dirão:

- Por que mudar?

Algo como um carpe diem. Só um entre tantos conceitos envelhecidos que são adotados hoje. Todos os fundamentos, teorias e práticas que vejo só de andar pelas ruas possuem profundas rugas. As vozes todas soam como ecos finitos, provocando risadas dos mais atentos, indignação de outros. Alguns ainda crêem. Dizem não ser no sistema, mas nos mecanismos de mudança existentes. São conhecidos como tal, mas não são nada além de parte dele. Protestos, greves, ONGs e demais maneiras de se organizar, todos foram incorporados pela sociedade, pelo sistema, pela política em geral.

O que é democracia? Democracia não existe. Meus pais, ao ouvirem isso, lembrarão da época em que a afirmativa era levada ao extremo, explicitamente. Tempos de polarização aqueles, drásticos em todas as suas medidas, de idéias determinantes e de repressão. Mas a verdade é que, passadas décadas, o que foi recuperado não chega a se aproximar da liberdade, agora sendo utópica em minhas palavras. Não seria ela sempre a utopia máxima? As utopias hoje soam todas ocas, e verdadeiramente o são.

Alienados são aqueles rendidos ao supracitado sistema, fiéis da sociedade de consumo e de suas muletas particulares. Adeptos da cultura do não-pensar, das opções mais óbvias e ao alcance. Às vezes, da sobrevivência. Em outros casos, de toda a exacerbação, desde o consumo até a própria inconseqüência de seus atos. Na maioria das vezes, no entanto, são pessoas as mais comuns, que trabalham para pagar as contas, casam, têm filhos, escrevem besteiras na internet (os que têm acesso), passeiam no shopping nos fins-de-semana. Assistem à televisão e votam porque têm que votar, votam porque é seu “direito” (e não obrigação), enfim, atuam dentro de seus limites do mais pleno conformismo.

Alienados também são aqueles, em geral jovens (mas também obstinados de idade mais elevada), que crêem em gritos de protesto ao invés de livros, em passeatas inúteis por causas distantes e em ideologias fora de contexto. É uma espécie de alienação talvez não amplamente reconhecida como tal, por estar disfarçada de engajamento político. Como os movimentos estudantis com mais fumaça que idéias, cada vez mais distanciados do chão.

E onde seria este chão? Talvez a maior pergunta que cabe aqui, inevitável para estes tempos. Muitos tateiam, mas ainda acredito ser o mais grave o fato de um número ainda maior de indivíduos acredita saber onde pisa. E se eles não sabem exatamente o que deve ser feito (justamente por ser a crença frágil e infundada), patinam em suas ações, uns realmente tentando acertar, ainda que sobre estruturas em ruínas.

- Os fins justificam os meios e seremos todos felizes – eu vou ganhar a minha fatia desse bolo, mesmo que a massa desande (tinha um ovo estragado).

Há os que dão risada de tudo, vestem máscaras espalhafatosas de cinismo e com eles vai tudo bem. Aliás, para o bem da economia atual, de tendências egoístas baseadas em idéias (supostamente) libertárias, todos os que têm os bolsos cheios estão safos, serenamente despreocupados. Para estes poucos afortunados, sempre haverá soluções. Liberdade, igualdade e fraternidade brindados com espumantes caríssimos, todos os anos!

E, afinal, como pode ser possível atuar na política com lucidez, neste contexto de disfarces e causas vencidas? A pergunta não se responde, mas reverbera no pensamento de umas tantas pessoas. Penso que não ser adepto de respostas prontas (para nada) pode ser um passo. Abrir-se a novas idéias que podem vir a parecer plausíveis, concretizáveis.

Em tempos de desilusão, de tentativas frustradas e fraudes cotidianas, resta sim o ceticismo. É tanto a alternativa fácil do ponto de vista da sobrevivência quanto a mais inevitável delas. Mas, que fique claro, não se trata de um ceticismo surdo e conformado. É um estar atento ao que acontece, sem perder de vista a si mesmo. Qualquer coisa que podemos mudar começa no que está aqui e em volta.

Uma Fotografia

Por Maria Gabriela Raposo


“Custa-me muito olhar para esta fotografia da minha filha mulher”.
Tenho álbuns e álbuns dela em bebê e menina; na adolescência passei a fotografá-la menos e, sobretudo, a esquecer-me de organizar as fotografias.
Não há mais nada escrito no verso, nenhuma indicação sobre o ano ou até mesmo do momento em que a fotografia foi produzida. Não sei com que idade ela está nessa foto. E não fui eu quem lhe comprei a roupa que veste. Não consigo precisar o momento que as roupas e até as situações eram construídas por mim especialmente para serem fotografadas. Há inclusive fotos que não lembro de ter tirado...
Observando estes muitos álbuns tão organizados, com legendas completas contendo o dia, hora e local precisos, lembro do quão insegura me sentia naquela época. Pensava que o tempo melhoraria esta insegurança. Ela não precisaria tanto de mim, se alimentaria sozinha, andaria sozinha, iria à escola sozinha, não mais ligaria para buscá-la em algum canto e em pouco tempo passaríamos semanas sem nos ver. Ligaríamos apenas para perguntar se está tudo bem, e uma breve resposta seria proferida sem emoção, pois ela está sempre lotada de afazeres e de amigos à sua volta. Sim, ela não precisa tanto de mim agora. Será que ainda precisa pelo menos um pouco? Continuo insegura pelo fato de não poder ajudá-la tanto.
Lembro-me exatamente de um dia em que eu dormia profundamente e o telefone toca, por volta das sete da manhã. Era minha filha aos prantos. Ao ouvi-la daquela forma, entrei também em desespero e quase não a deixei falar. Ela contou-me que chovia muito, seu guarda-chuva havia quebrado e acabava de pagar o ônibus com vinte reais e esquecer o troco. Dei-lhe uma bronca por assustar-me daquela forma por motivos tão tolos, gritei até. Ela apenas disse “Sei que você não poderia me ajudar, mãe. Mas achei que sua voz me acalmaria. Acho que você não consegue mais me ouvir”. E, a partir deste dia, ficamos cada vez mais distantes. Diminuíram as fotos e os telefonemas. Na verdade, esta aqui é a foto mais recente. Não há nada escrito, mas sei que se trata de uma das primeiras festas da faculdade. Época em que ligações ainda eram freqüentes. Custa-me olhar para esta foto. O seu ar de independência é quase irritante. Seu sorriso parece autêntico assim como o dos amigos. Parecem mesmo felizes. Todos da foto seguram latinhas de cerveja. Sim, ela já é uma mulher. Nem ao menos sei onde ocorreu esta festa. Já não tenho mais tantas informações assim sobre sua vida. Nem lembro se ela dormiu em casa.
Engraçado, nas fotos de sua adolescência há sempre um vulto. Seu pai estava sempre por perto. Em quase metade das fotos aparece como um figurante. Era bom quando ele estava conosco. Agora, assim como você, tem outras prioridades na vida. Penso em como será daqui a alguns anos. Os afazeres tendem a aumentar, as visitas, já tão escassas, a diminuírem ainda mais. Só sobrarão fotos. Gosto tanto delas. Remetem-me a emoções, vão se tornando angustiantes à medida que se tornam mais recentes.

Dólares. Brasil.

Por Flavia Risi

Meu caro amigo,

“Me perdoe por favor, se não lhe faço uma visita...
Mas como agora apareceu um portador...”.

Sei que já faz muito tempo... 1984. Diretas Já. Nos sentíamos heróis ilustres dos livros de História. Robespierre. Che Guevara. Simon Bolívar e San Martín. É, nossos nomes estariam lá... Nas últimas páginas do livro; Aquela parte que é vista só no final do ano, depois de percorrer o pau-brasil, o açúcar, o café... O império, a República... Marechais, presidentes... Ditadura e, enfim, nós. Os revolucionários de 1984. Tínhamos 14 anos e na sua casa planejávamos como íamos transformar o Brasil. Ensaiávamos capas e vôos... Super-heróis. É, super-heróis brasileiros...
Hoje, meu amigo, a liga da justiça usa outra cueca. Lembra daquela sunga vermelha que vestiam sobre o uniforme? A nossa de hoje não é mais vermelha. Porém, igualmente poderosa: é cheia de dólares.
Nosso super-herói, aquele mesmo que acreditávamos, hoje parece gordo e cansado. Exausto até mesmo para saber das coisas que acontecem. A Liga foi desestruturada. Existe um traidor, ou mais. Traidores porque nos fizeram colocar nossas próprias capas neles e, hoje, não se lembram nem mesmo da cor delas.
É caríssimo amigo. Não estou otimista.
- Homens com dólares na cueca?
- Não estou otimista.
- Pagar R$ 44,00 só de assinatura de linha telefônica?
- Não estou.
- Dentro de 50 anos os recursos naturais da Terra estarão esgotados?
- Não.
- Mensalão, Sanguessuga, compra de votos, “little Rose” e “little Boy”... Chacinas, tráfico, meninos de rua e homens de rua, crianças fora da escola, crianças mortas de formas inumanas, fome, tristeza...
- É... Tristeza. Impossível ser otimista. Será que meu neto saberá o que é Amazônia?
Hoje você está longe. Sinto saudades de você e da nossa coragem. Da nossa esperança e daquela ilusão. Não só a pátria, mas, o mundo foi traído. Nem mesmos nós, com as camisas amarradas no pescoço em arriscados saltos em “vôos”, poderíamos fazer alguma coisa...
Ivete e eu continuamos os mesmos que você tanto conheceu. A pequena grande novidade, que este mês faz 2 anos, ainda lhe é inédita. Talvez por cauda dela o medo do mundo tenha se transformado em pânico. Não agüento mais as cores de nossos super-heróis e não agüento mais a ausência da nossa revolucionaria dupla encapada.
Não sei se você lembra do Caco... Aquele que tocava violão e era o encantador das mulheres?! Hoje é tucano e vereador. Sempre que vem aqui em casa há discussão. As verdades absolutas e a cara de pau dele quando se fala em política... Irritam.
O resto da turma, como eu, está casada e distante.
Sinto saudade de você caro amigo.
Sinto saudade de nos dois em 84.
Quando você vem nos ver?


Muitos abraços, carregados do nosso humor,


Augusto.

Leia a resposta da carta em: http://textosoficinauff.blogspot.com/2007/06/re-dlares-brasil.html

Encontro Marcado

Por Buno Fernando

Quem nunca ouviu aquela expressão inspirada em um epicurismo afobado? Eu vivia atormentado por obrigações travestidas de conselhos. Pouca coisa que estivesse além do primeiro caderno em meu jornal era digno de minha atenção. Vez ou outra, buscava alguma notícia que me atraísse. Porém, tudo do meu gosto circunscrito. E mesmo assim, todo dia era um conselho diferente que eu ouvia. Se saía pela manhã, no mínimo três “recomendações para a vida” eu recebia. De minha vizinha de porta, D. Josefa, a advertência vinha de uma das inúmeras revistas semanais que ela colecionava. Não bastava comprar apenas uma; cada editora publicava o seu periódico de tal maneira a não se imitarem. Dizia D. Josefa: “Nesta, as receitas de doces são as melhores, mas não espere por fofocas quentes. Se as quiser, veja aquela outra, que não tem receitas muito boas, mas os moldes de ponto-de-cruz são divinos”. Ela uma especialista. Deveria ser ombudsman. Cada dia da semana era reservado ao destrinchamento de uma edição. E sempre que eu saía para o trabalho, uma nova pérola. “Faça isso”. “Seja isso”. Odiava aqueles imperativos. Como bom trabalhador, suporto-os apenas quando são de meu superior.
Minha mão ainda estava na maçaneta. Pensando sobre a previsibilidade da próxima cena de minha vida, me questionava: “Por que a D. Josefa não reclama de seu marido diabético que assalta o açucareiro pela madrugada?” Seria assim: “Bom dia, D. Josefa, tudo bem? E o Sr. Pasmado?”, para o que responderia: “Tudo bem, meu filho! Não é que ele atacou novamente o pote de açúcar enquanto eu fui ao jornaleiro. O médico já falou que a perna dele corre o risco de gangrenar. Mas não adianta, por mais...”, e por aí seguiria. Não tenho dúvida. Sou uma pessoa muito paciente. Se fosse preciso sairia meia hora antes, caso minha conversa matinal com a D. Josefa fosse sobre saúde. Realmente, saúde é um dos grandes problemas da 3ª idade. Talvez por isso, quando chegamos a ela, nosso papo assuma nuanças um tanto hipocondríacas. Quem me dera dialogássemos sobre pressão alta, osteoporose, artrite, todas essas doenças que ameaçam velhinhos. Mas eu sabia que após a troca de bom dia, ela me contemplaria com o pensamento do dia. Maldita seção em periódicos! Por que ela existe? Ou melhor: por que a lêem? O que pensam que são? Magos? Gurus? Profetas? Por que dão tanta importância ao que escrevem? Seria assim se soubessem quem as cria?
Sabia que ao passar pela portaria se daria mesma situação. Seria o porteiro Bill, nomeado de Severino por uma plaquinha em sua mesa, e seu inseparável, e indesligável, rádio-relógio. Sempre sintonizado na AM, em uma daquelas freqüências em que parece haver uma única programação, mudando apenas o locutor. Muito semelhantes aos periódicos da D. Josefa, essas estações são verdadeiras revistas radiofônicas de assuntos gerais. Enquanto no meio impresso procuramos o que queremos através das páginas, pelo rádio temos um horário determinado para cada seção da revista. Também se ofereciam conselhos nesses programas. Sem problemas para mim, ouço pouco rádio, e o meu nem possui AM, dizem que é tecnologia ultrapassada. Mas o Bill ouve. E muito.
Quando saio do elevador, passo pelo Bill. Cumprimento-o, e de praxe pergunto como vai. Concluída a formalidade da primeira etapa, ele deveria fazer um comentário sobre sua patroa. Ou sobre seu herdeiro que estourou o tampão do dedão do pé jogando bola na rua de paralelepípedos mal colocados perto de sua casa. Até mesmo uma fofoca nova sobre alguma moradora do prédio seria bem-vinda. Adoro fofoca. Mas não. O cumprimento que recebia pela manhã era o seu típico “dia”, seguido do conselho que ouvira na rádio. Já tentei sair para o trabalho bem cedo, na esperança de que aquela consultoria profética e imperativa não tivesse sido proferida. Em vão. Essas mensagens eram narradas em várias sessões, e a primeira, antes das 6:00. Nessa ocasião, acordar cedo não me serviu para escapar das palavras do “guru”, recitadas pelo Bill. Muito menos da D. Josefa pude escapar. Ela era uma velhinha muito solitária, e o ato de me presentear com algumas palavras de reflexão tinha sido incorporado a sua rotina diária. Tipicamente exótica, como com qualquer pessoa que se sinta assim.
Não poderia esquecer o terceiro personagem de minha via-crúcis diária. O faz-tudo do prédio, Joaquim Feliastério, vulgo Fred, não sei por quê. Pegava no trabalho às 7:00. Vinha do outro lado da cidade e acordava às 4:00. Apenas molhava o estômago com um pouco de café barato. Religiosamente, comprava o jornal. Aquele que o seu salário permitia. Conheço esses jornais. São muito parecidos com as revistas da D. Josefa, e os programas da rádio AM, como os que Bill ouve. Também naqueles há a seção de “conselhos grátis”, pode não ser esse nome, mas todas poderiam ser assim traduzidas. O Fred não estaria sendo lembrado se ele, também, não lesse sobre esse tema, e se ele, como os outros, não comentasse sobre eles comigo.
Sempre quando passo pelo Fred poderia ser: “Vamos lá! Me conte sobre os moleques que destruíram seu jardim. Reclame da D. Josefa, que quando manda o lixo para a lixeira, a sacola sempre está escorrendo aquele chorume e ela nem para dar um jeito”. Ledo engano. Por que acreditaria que pudesse ser diferente? Até o Fred! Dizia ele: “Olha, meu amigo, seja assim...”, “Faça as coisas desse jeito...” Ele não declarava sua fonte de inspiração, mas eu sabia sua origem. Era impossível não saber. Feliz foi o dia quando tentei escapar do Bill e da D. Josefa em vão. Feliz porque pelo menos do Fred eu escapei.
Mesmo que não encontrasse os três, eram ligações, encontros inesperados pela rua, e-mails, enfim... todos tinham conselhos para mim.
Quando, finalmente, abrisse a porta seria mais um dia assim. Entre o girar da maçaneta e o meu devaneio lamurioso, toca o telefone. Era Sonia, a minha melhor amiga do trabalho e também a maior fofoqueira de lá. Não necessariamente nessa ordem.
- Bruno?
- Oi, Sonia, pode falar...
- Você não sabe da novidade que descobri pelas bocas miúdas.
- Vamos, diga logo antes que me atrase para o trabalho.
Eu trabalhava em uma agência de notícias, e há alguns anos estava insatisfeito, desde que fui mandado para aquela área, responsável por seções em diversos jornais, revistas e programas de rádio.
- Jonas se aposentou, lembra dele? Não importa. Já tô sabendo que você sairá daquele porre de seção e assumirá a dele.
- Cê fala sério? Ou é mais uma fofoca?
- É sério, homi. Não pude resistir a te dar essa notícia logo. Você sabe que minha anteninha está sempre ligada. Você sempre briga comigo porque eu fico prestando atenção na conversa dos outros. Mas dessa vez valeu a pena, e muito. Pode confiar em mim, ouvi isso nos corredores da boca do Paulo. Soube também que ele saiu com...
Tive que interromper sua verborragia.
- Tudo bem, tudo bem. Me deixe ir. Se eu chegar atrasado não ganho o cargo.
- Ah é, é, é. Pode ir, que quando você chegar te falo sobre o que rolou na festinha da semana passada. Tinha que ter visto a Maria...
- Tchau, Sonia!
- Desculpa. Beijo e até logo.
Aquele devaneio lamurioso evanesceu. A D Josefa foi a primeira pessoa naquele dia a receber um conselho criado por mim, o qual ela ainda não tinha lido em nenhuma de suas revistas.

Fotografia

Por Clarissa Nanchery

“Custa muito olhar para esta fotografia da minha filha mulher.Tenho álbum e álbuns dela em bebê e menina; na adolescência passeia a fotografá-la menos e, sobretudo, a esquecer-me de organizar as fotografias.”

Não. Não era propriamente esquecimento, posso ver nitidamente que se trata de refutar um gesto que há tanto significava o “fazer” devoto de um pai que admirava e amava com um sentimento racional.

Essa mesma racionalidade que hoje me traz angústia e solidão. Sim, estou só, de fato. Mas não é da falta de companhia que falo. Refiro-me, sobretudo, à situação de não ter a quem dirigir as mais doces afeições e saudades de um homem de cinqüenta anos refugiado na eterna Europa. Há quem ainda me questione sobre minha bela filha.... Não nem a ela todo o carinho que guardo pode ser entregue.
Como se parece coma mãe! O sorriso é o mesmo. A postura impositiva.... Talvez haja nela o mesmo tom arrogante de quem olha por cima; como Dulce o fez por tantos anos. Os cabelos longos e negros... A maneira explosiva e expansiva de falar...
Dulce deveria imaginar a dor que me causaria ao mandar-me esta fotografia. Decerto pensou, mas me enviou ainda assim. Só ela teria um gesto tão egoísta. Como não se ateve ao motivo de meu afastamento? Como pode quebrar minha redoma e enfiar-me na guerra sem ao menos consultar-me se era esse o meu desejo? Coisas de Dulce. Enfrenta as mais rígidas barreiras para fazer valer a sua vontade. Sempre foi assim: o que ela queria era o que deveria acontecer; sem pensar na repercussão que ganham as palavras e gestos, e munida da mesma retórica convincente de quem está absolutamente certa.
Até nisso Ana faz lembrar cada vez mais minha ex-mulher. No último encontro que tivemos, brigou, encarou-me e quase me convenceu de que a mãe não estava errada, nunca errara e que tudo se justificativa se eu notasse o quanto havia sido culpado. Culpado de quê? Não querer ver o que se atrevia a mostrar-se? Talvez seja isso! Mas repito tal frase sem nenhuma convicção e olho esse álbum repleto de fotos antigas sem conseguir perceber a grande culpa que teimam, mãe e filha, em me atribuir.
Éramos felizes desde sempre, desde o nascimento de Ana. E não há o que duvidar: vejo, em cada um desses momentos fotografados, a minha fisionomia contente e realizada, depois de tanto tentarmos a chegada de um filho que pudesse chamar de “meu”. Seis anos precisamente. De fato não foram as épocas mais felizes de nossas vidas... Recordo-me de acusações e injúrias que lançávamos um sobre o outro. Falta de paciência, diria até falta de respeito, mas amor nunca faltou. Pelo menos, não a mim. Dulce vivia pelos cantos sem brilho, sem o doce de seu nome. Animava-se apenas quando estava longe de casa. Mas sempre acreditei que tudo isso representava uma atitude normal de uma mulher ansiosa pela chegada do filho e que, perto do marido, não conseguia deixar apenas latente a situação que vivenciava. Era isso. Era apenas isso o que me passava pela cabeça, não podia ser outra coisa.
A fotografia de Ana na mão não me traz, exatamente, sentimentos perversos, nem tampouco os mais bonitos. De belas ficam apenas as lembranças de ter um lindo bebê nos braços, de sua infância festiva e agitada. Prefiro esquecer a adolescência complicada da personalidade que estava se formando cada vez mais diferente da minha. Da mesma maneira que tentarei esquecer a fotografia dessa moça estranha na mais remota gavetinha de meu armário.
Minha racionalidade não me permite amar e ter saudades de uma filha que não é minha, de uma moça que não fui eu que gerei.


Bagdá. Iraque. Meus primeiros dias como correspondente.

Por Clarissa Nachery

Não é que eu seja propriamente um americano crítico. Não escrevo agora pelo ofício que exerço. Não desejo que me leiam com a mesma ansiedade de um jornalista que almeja reconhecimento. Apenas estou desolado, e como se retornasse ao colo de minha mãe nesse instante, quero falar e chorar...
Passaram-se vinte dias desde que cheguei a Bagdá. Horror. Medo. Tristeza. Por mais intensa que seja a palavra, dificilmente poderá conservar-se “boa” mimese do que tenho sentido durante esse período. Ah! Lembrei-me de outra bastante pertinente: indignação.
Indigno-me pelo meu país que tanto se autoclassifica poderoso e capaz de sanar os problemas do restante do mundo. Como somos petulantes! E como muitos americanos realmente acreditam nessa teoria hipócrita! Mesmo eu... Cheguei aqui crendo no bem que estávamos fazendo para essa população tão violentamente reprimida por um ditador sem escrúpulos. Ingênuo, prepotente que sou.
Indigno-me pelos meus governantes que desejam enganar ao planeta com frieza e dissimulação de dar inveja ao melhor de todos os advogados do diabo. Mentiras que dizem... mentiras que nos fazem contar...
E certamente a maior dentre as indignações é por mim mesmo. Relato todos os dias fatos que muitas vezes não vejo. Tenho que transmitir aos meus compatriotas informações destorcidas sobre os soldados americanos que aqui estão. Não! Eles não vieram para cá fazer o bem!Dezenas de pessoas inocentes são mortas. Eles torturam e agridem cidadãos que não têm como e nem para onde correr, como se fossem animais podres, fétidos, anulados de condições humanas.
È isso que vejo.
Não é isso o que falo.
O pior dos enganadores frios e dissimulados... È através de mim que o mundo sabe que os Estados Unidos são “bonzinhos” e “amigos” dos iraquianos. . Sou eu quem narra histórias comoventes de soldados que, nas horas vagas, levam criancinhas à escola; eu quem narra o triste fim de heróicos lutadores americanos em terras alheias. Parece homérico e grandioso, mas na verdade apenas reflete casos isolados e previsíveis diante da trama que eles mesmos inventaram. E certamente este não é um “gran finale” do qual a família dessas pessoas pode se honrar. Eu sentiria vergonha de um filho que tivesse ido para um país em guerra lutar por causas injustas, defender pessoas que não precisavam desse tipo de “defesa”, muito menos a mereciam.
Ontem entrei nas ruínas de um prédio com uma equipe para fazer umas fotografias. Num cantinho, bem escondido, estava um senhor com duas crianças pequenas. Ele não podia se levantar, tinha as pernas feridas. Balbuciaram alguma coisa e o pai falou alto com os filhos que começaram a nos atirar pedras e a nos xingar enquanto fotografávamos.
Foi o que aconteceu.
Não foi o que escrevi.

NEW YORK TIMES, 15 de outubro de 2006.

“Família de iraquianos é salva por repórteres americanos”

Páginas

Por Gabriela Hazin

Não sei por que resolvi falar sobre isso agora. Uma sensação de angústia, dúvida de me sentir tão pequena diante do mundo; incapaz...Será? Não sabia. Nesse momento eu me sentia assim. Tentei achar resposta para vários problemas que me perseguiam; estava sem emprego há alguns meses e havia perdido a pessoa que mais amava há quinze dias do acontecimento desse dia: o meu pai.
Nunca conheci a minha mãe. Ela faleceu logo que nasci com uma hemorragia interna. Meu pai sempre cuidou de mim. Foi meu protetor, meu conselheiro, minha base para trilhar os meus caminhos.
Eu tenho uma filha; penso nela todo dia e o que posso ensiná-la. Sou separada. Mas isso não me abala; “Não era pra ser”, já dizia o meu pai.
Naquela manhã, eu saí para mais uma jornada de entrevistas; a situação não estava boa em casa, eu tinha que pagar as contas, colégio, alimentação. Não queria que nada faltasse para a minha filha de apenas 13 anos e já chegando para mim dizendo: “Mãe, eu te ajudo, eu posso arrumar algo para vender”. Não queria sacrificá-la a isso, não era justo; ela tinha que estudar; sempre defendi isso.
Depois de ver várias portas se batendo na minha frente, achei que tudo estivesse errado em minha vida. Afinal como eu iria sair dessa situação? Eu tentava entender mas não achava resposta; o mundo se fechou para mim e eu me vi presa.
Saí pelas ruas à noite naquele dia frio tentando buscar respostas. Eu achava que todos olhavam para mim e me chamavam com os olhos de incapaz, incompetente.
Me entreguei às drogas. Não sei como pude me render assim ao meu problema entregando a minha vida ao nada. Caminhei sem parar durante boa parte daquela noite; eu me sentia leve, deixando o vento me levar. Esquecera dos problemas, do mundo. Mas, quando vou atravessar a ponte e olho para aquele horizonte infinito de águas, quero que ela me leve, me possua.
Eu abri os meus braços e desejei que o vento me levasse, me guiasse para o caminho certo; vi o rosto da minha filha. Como pude fazer isso comigo e com ela? Eu me encontrava completamente dopada de uma substância que não me deixaria mais ver aquele sorriso da minha filha; as lembranças boas da vida. “Aterrissei” e continuei andando.
Busquei ajuda entre amigos e parentes próximos, consegui superar essa barreira. Hoje resolvi vir aqui contar isso para vocês, porque eu não cheguei a me deixar levar pelas drogas, mas poderia ter acabado com a minha história de vida prejudicando também as pessoas à minha volta. Sendo esse lugar uma terapia em grupo e por todo apoio que vocês me deram, deixo registrada essa parte da minha história. Obrigada.