4 de jun. de 2007

Diário

Por Clarissa Nanchery

2 de maio de 1992.

Hoje completei 18 anos e sai da casa dos meus pais. Por mim já teria ido embora antes, mas esperei essa maldita maioridade pra eles não me encherem ainda mais a paciência. Ah! Estava cansada de tantas recomendações, preocupações e cobranças! Tudo o que eu fazia requeria uma reunião familiar, um saco!
Pra mim já bastava ouvir sermões e “bons” exemplos de vida de Carmem e Alberto falando de suas trajetórias de vidas “perfeitas”!
Eu não preciso de conselhos... não preciso trabalhar ou estudar pra ser feliz como eles querem... E tenho tudo o que quero, minha avó me banca e é assim que vou viver sozinha a partir de agora.

5 de maio de 1992.

Já estou morando na minha casa pequena, mas linda! Ótimo não ter que dar satisfação a ninguém, não ter horário pra fazer nada!
Hoje caminhei pelo parque da cidade à tarde. Não almocei, não sei direito o quê e como preparar, mas não sinto nenhuma falta da minha mãe!
Mais tarde, vou passar na cãs da Vitória, ela vai adorar saber que estou morando sozinha. Já estou até imaginando as festinhas que vão acontecer aqui...

19 de junho de 1992.

Adorável vida!
Não tenho compromissos, não tenho cobranças, durmo às três horas da manhã, acordo duas da tarde, meus amigos me visitam quase todos os dias e estou me superando cada vez mais na cozinha!
Hoje, quando fui fazer umas compras, encontrei vários objetos de decoração exóticos. Comprei-os, claro! Só não sei se o dinheiro vai dar. Minha avó está segurando o meu dinheiro, está começando a concordar com meus pais e está querendo que eu volte pra casa. Não volto!
Por falar neles, “Dona” Carmem e “Seu” Alberto não param de me mandar cartas. São tão irracionais: eu aqui nem me lembrando que existem, enquanto eles estão se desgastando em preocupações comigo... Mas não sinto nenhum remorso, eles têm mais que se acostumarem.

12 de julho de 1992.

Hoje conheci uma pessoa incrível! Ele se chama Rogério, é amigo da Vitória. Super astral, super inteligente, diferente e muito atraente. Ele veio à minha casa com a galera. Ficamos até às quatro da manhã bebendo conhaque e falando besteiras.
Adorei o Rogério, tem 34 anos, mas nem parece.
Amanhã vamos num show juntos. Estou completamente ansiosa!


14 de julho de 1992.

Achei que na levantaria da cama hoje... A cabeça está quase explodindo até agora! Acho que nunca tinha bebido tanto quanto ontem... Nossa! E aquela galera que a cada hora vinha com uma droga diferente. Eles são ótimos, loucos!
Eu e Rogério nos beijamos ontem. Foi perfeito!


11 de agosto de 1992.

Depois de quase um mês sem aparecer, o Rogério veio à minha casa hoje. Eu já estava morrendo de saudades e ele parecia estar também pelo jeito que me agarrou. Estava meio doidão, mas eu nem liguei, só pensei em curtir aquele momento pelo qual esperei bastante... E foi ótimo, apesar de um pouco agressivo.
Rogério me convenceu a transar sem camisinha, disse que era muito melhor e que eu podia ficar tranqüila, porque ele ia gozar fora. Eu permiti, não tinha nada a perder mesmo e acho que foi realmente melhor.

18 de agosto de 1992.

Rogério está aqui há uma semana. Eu estou adorando, claro! Ele é um pouco compulsivo, quer transar toda hora, mas isso não me incomoda. Além disso, não quero que vá embora.
Hoje ele disse que vai passar uma semana no Rio de Janeiro para resolver uns problemas, só não disse que tipo de problema. Sei que não gostei nada disso.

22 de setembro de 1992.

Estou confusa, nervosa!
Vitória e Luana vieram hoje me dizer que Rogério está doente, está com AIDS...
As meninas ficaram desesperadas quando souberam que eu transava com ele sem camisinha. Mas consegui acalmá-las ao explicar que Rogério já havia me dito que, se ele gozasse fora, não haveria riscos de engravidar, nem de me contaminar com alguma doença.
Só que estou muito preocupada. Não conheço bem essa doença, mas sei que mata. Será que Rogério morrerá? Desespero...


03 de novembro de 1992.

Sinto mal. Rogério não aparece, meus amigos não têm me visitado.

25 de novembro de 1992.

Estou muito sozinha, terrivelmente sozinha. Emagreci oito quilos e não sei o que está se passando no meu corpo.
Nem meus pais têm me procurado. Estou precisando deles...


3 de janeiro de 1993.

Entendo que comecei esse ano nada bem. As coisas estão estranhas para mim. O abraço frio que meu pai me mandou por telefone na virada certamente não me deixou melhor.
Hoje recebi uma carta escrita pelo Rogério há três semanas atrás. Dizia apenas que estava preocupado comigo e que deveria procurar um médico o mais rápido que puder.

21 de fevereiro de 1993.

Estou com AIDS.
Rogério não sabia o que dizia. Não era verdade que eu não corria risco de me contaminar. Isso aconteceu e agora sei que tenho uma das doenças mais fatais.
Não sei como pude ser tão ingênua, tão imatura.
Encontro-me agora numa situação que nunca poderia imaginar, precisando de ajuda, de apoio, e sem ninguém ... já não tenho mais ninguém, acho que já não tenho mais vida.

5 de março de 1993.

Hoje fui internada. Disseram-me que tenho poucos dias, meu sistema imunológico é muito baixo e meu organismo não vai conseguir superar essa doença tão devastadora.
Já não tenho medo, já não sinto mais nada. Meus pais estão comigo, eles, a quem desprezei tanto há poucos meses atrás, são agora a única coisa que me fortalece de alguma forma.
Percebo agora como a preocupação que sentiam era importante para mim. E me pergunto como fui tão arrogante e pensar que me bastava nessa vida tão fútil e desprezível que eu mesma criei. Como pude acreditar na minha independência mais dependente? Como devotei-me em carinhos superficiais de “amigos” que nem mesmo me conheciam?
Quanta infantilidade! Que vida mais desperdiçada!

2 de maio de 1993.

Hoje completo dezenove anos e estou prestes a morrer. Estou feia, magra, sentindo-me suja e amaldiçoada por mim mesma.
Tudo o que pensei algum dia hoje ganha outro sentido, sentidos que provavelmente não se estenderão para além desse momento, que não serão conhecidos por mais ninguém, porque em curtos doze meses dei a minha vida por encerrada.

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