27 de jun. de 2010

Despedida

Por José Leonardo Tadaiesky Batista

(Os dois estão sentados, separados , cansados. Talvez ela tenha chorado).
Ele – Quer dizer que você vai embora mesmo, assim? (Ela fez que sim) Está certo. Deve ser melhor para nós, quem sabe?
Ela – A gente não anda bem... me sinto mal, é preciso para nós dois.
Ele – Se é o que você quer, não sou eu que vou impedi-la.
Ela – Eu sinto muito! Isso é para a sua segurança... e para a minha. (Ele começa a chorar) Por favor, não chore, Pedro. Não quero te fazer sofrer, é necessário que eu me vá.
Ele – Então você não pensou direito no assunto quando decidiu ter essa conversa. É claro que estou sofrendo, mamãe!
Ela – Você sabe que seu pai me odeia, nós nunca seremos uma família novamente. Se eu ficar ele vai transformar sua vida num inferno também. (Ela se levanta) E isso não vai acontecer.
Ele – Mas nós já conseguimos fugir.
Ela – Mas não temos mais nenhum dinheiro. O melhor é eu sumir... e você voltar a morar com ele.
Ele - O quê? (Pedro se levanta) Você vai me mandar de volta para ele?
Ela – Você só tem dezesseis anos, Pedro, não pode ficar aqui sozinho.
Ele – Eu sei me virar.
Ela – Não, não sabe! (Ela se exalta). Seu pai é muito esperto, ele deve estar procurando por nós há muito tempo. É melhor que te encontre sozinho. Ele ama você, nunca te fará mal. O problema sou eu.
Ele – Eu sempre vou odiá-lo por te fazer sofrer. E nunca vou perdoá-lo por me separar de você.
Ela – Não diga isso, você vai ficar bem.
(Mãe e filho se dão um longo abraço. Os dois choram. Ela se vira, pega as malas e abre a porta)
Mãe – Eu amo você! (Ela sai)
(O silêncio reina. Algumas horas depois, ouvem-se batidas na porta. O pai entra).
Pai – Até que enfim te achei, meu filho. Estava preocupado. Cadê a... você sabe...
Pedro – Não está aqui. Ela me deixou. (Pedro está sério, olhos vermelhos fixos no nada).
Pai – Sábio da parte dela, fugiu de um processo e da cadeia. Sequestro é crime, afinal.
Pedro – Ela está longe agora.
Pai – Melhor assim, filho. Ela não podia te sustentar, eu posso. E tenho também a sua tutela, então não tem o que discutir. Pega suas coisas e vamos.
Pedro – Eu só quero que você saiba que eu te odeio e vai precisar de muito para que eu mude de opinião. Tarefa impossível, pai. (Tom sarcástico)
(Os dois se olham. Pedro sai do cômodo).
Pai – Não precisava ser assim. (Diz para si mesmo). A culpa foi sua, Abigail.
(O pai deixa o cômodo. Ambos entram na viatura policial e deixam o local).

Minhas viagens

Por Amanda Cinelli

Aos 7 anos viajei pela primeira vez. Viagem de família com destino ao interior, para ver mais família. Ainda sinto comigo o cheiro do álcool que esquentava enquanto o carro, ligado na garagem, esperava terminarmos nossos últimos detalhes. A família, já não sinto.
Neste dia, descobri como era bom o sabor do vento da baía ao passar pela ponte. Foi a primeira vez que fechei os olhos de encontro ao desconhecido. Aos poucos, descobri que o vento, contundente e frio, rasgava e ruía o tecido do meu rosto macio de criança. Descobri que não me importava com a dor, sensação esquisita que todo mundo reclamava, mas que nunca me fez sofrer. Ao fim da viagem, descobri que também não me importava com despedidas.
Naquela semana, ganhei a primeira mala que me acompanha até hoje. Sair do eixo nunca me pareceu incorreto, se eu estivesse com ela. Quadrada, larga, marrom e de couro, ela nunca perdeu o cheiro de álcool da primeira vez. Os adesivos, que nunca se soltaram, e os rabiscos, feitos de caneta permanente, foram feitos mais tarde quando voltei a viajar, desta vez numa viagem até o estado vizinho, para ficar.
Mudei de eixo mais quatro vezes até quebrá-lo de vez. Me mudei para minha mala, recentemente remendada com tecidos de roupas antigas que achei na minha última mudança.

24 de jun. de 2010

Aproximações

Por Amanda Cinelli

Sozinha no terraço há pelo menos 2 horas olhava para o céu, para rua, para os carros. De joelhos, de pernas cruzadas, de barriga para cima, de bruços, de todos os jeitos era fácil ficar e difícil sair. Enumerar o cotidiano tinha se tornado meu passa-tempo preferido. Já tinham passado dois pássaros grandes e um avião sobre mim. Lá em baixo eu vi 13 cachorros passeando com seus donos, 5 cachorros de rua sozinhos, 2 gatos no prédio vizinho, dezenas de pessoas, centenas de carros e uma charrete. Contar o que passava por mim sempre pareceu mais interessante do que contar o que se passava em mim. No alto do 12º andar parecia ainda mais fácil. Mais próximo das nuvens, mais distante do concreto, mais próximo do vento, mais distante de você. Tinham 4 grandes nuvens na minha cabeça naquele dia. Quatro era a quantidade mais divertida de se observar. Mas não naquele dia. Naquele dia quatro foram os meus problemas, quatro foram as minhas dúvidas, quatro foram as vezes em que subi na bancada. Eu precisava me aproximar de você. De uma vez eu pulei.

23 de jun. de 2010

Bem que eu gostaria de...

Por Júlia Robadey

Bem que eu gostaria de esquecer essa madrugada. As lembranças do que havia acontecido permaneciam impregnadas na minha mente. Eram flashes atordoantes. E eu ainda não tinha plena certeza do que acabara de ocorrer. Ou, o que era mais provável, eu não queria acreditar. Pretendia viver a minha vida como se aquilo não tivesse acontecido. Foi um sonho ruim, só isso.
Desde a hora que acordei, sabia que o dia seria ruim. Ele nunca me ligou tão cedo. Disse que esperava poder conversar comigo hoje. Como se eu já não soubesse que ele estava me traindo. Fomos jantar. Fiz questão de escolher o restaurante mais caro. Afinal, era ele quem estava pagando. Depois de algumas taças de vinho tive a “surpreendente” revelação de que nem na traição ele consegue ser original. Tinha que seguir o clichê dos filmes e ser logo com a secretária?
Eu não estava triste. Na verdade, não sentia nada. O silêncio reinava no meu carro. A cidade passava por mim numa velocidade magnífica. As luzes eram hipnotizantemente coloridas. As ruas estavam vazias. Não podia imaginar que alguém estaria ali, naquela hora. A colisão foi intensa e rápida. O homem jazia no asfalto ainda quente. O sangue escorria criando belas formas no chão. A lua estava cheia, iluminando dramaticamente aquela cena. Ele era jovem, usava uma fina aliança na mão esquerda. O pouco de sentido que havia na minha vida morrera naquele momento.

Três músicas

Por Júlia Robadey

Ela não sabia como agir. Nunca havia passado por sua cabeça que um dia ele estaria ali, sentado no chão de sua casa, vasculhando seus vinis empoeirados. Isso depois de um pequeno acidente no trabalho, envolvendo um grampeador e a mão dele, fruto da distração rotineira dela. E ele estava ali, sorrindo.
Os dois conversavam sobre diversos assuntos. Eles se sentiam bem juntos, e nem sabiam. Em algum momento ele achara um vinil, relativamente novo. Ficou olhando para aquela capa simples e, ao mesmo tempo, tão bonita. Ele levantou, foi até a vitrola e botou na faixa oito. Era uma música tranqüila que dava uma certa nostalgia. Em ambos. A voz delicada da cantora ecoava na sala de uma maneira que envolvia aos dois. Eles se olham. Aquela música era sinestésica, tinha cheiro de terra molhada. Os dois concordavam.
Em seguida, as faixas um e doze foram escolhidas por ele. Elas traziam muitas recordações para eles. Talvez por isso ficassem calados, ouvindo. A voz era deliciosa, cheia de uma pureza perfeita para aquele momento. Ele a convidou para dançar. Ela, meio envergonhada, aceitou. Não houve beijo, nem nada desse tipo. Aquele havia sido o primeiro e único encontro dos dois. Ele seria convocado para a guerra no dia seguinte. Mas ela sempre teria aquelas três músicas para lembrar dele e daquele dia.

Bem que eu gostaria de...

Por Júlia Robadey

Ela não sabia como agir. Nunca havia passado por sua cabeça que um dia ele estaria ali, sentado no chão de sua casa, vasculhando seus vinis empoeirados. Isso depois de um pequeno acidente no trabalho, envolvendo um grampeador e a mão dele, fruto da distração rotineira dela. E ele estava ali, sorrindo.
Os dois conversavam sobre diversos assuntos. Eles se sentiam bem juntos, e nem sabiam. Em algum momento ele achara um vinil, relativamente novo. Ficou olhando para aquela capa simples e, ao mesmo tempo, tão bonita. Ele levantou, foi até a vitrola e botou na faixa oito. Era uma música tranqüila que dava uma certa nostalgia. Em ambos. A voz delicada da cantora ecoava na sala de uma maneira que envolvia aos dois. Eles se olham. Aquela música era sinestésica, tinha cheiro de terra molhada. Os dois concordavam.
Em seguida, as faixas um e doze foram escolhidas por ele. Elas traziam muitas recordações para eles. Talvez por isso ficassem calados, ouvindo. A voz era deliciosa, cheia de uma pureza perfeita para aquele momento. Ele a convidou para dançar. Ela, meio envergonhada, aceitou. Não houve beijo, nem nada desse tipo. Aquele havia sido o primeiro e único encontro dos dois. Ele seria convocado para a guerra no dia seguinte. Mas ela sempre teria aquelas três músicas para lembrar dele e daquele dia.

Bem que eu gostaria de...

Por Viviane Roux

Não ter dor de dente, conhecer o oriente, me importar menos com gente. Gostaria de saber voar, não ter contas pra pagar. Ser mais alta, bonita e magra. Bem que eu gostaria de ter um leão no quintal, ser menos normal. Saber dançar como a Beyonce, ter a voz da Amy e a pouca vergonha da Lady Gaga. Ah, mas eu gostaria de ser menos humana e mais ciência exata. Leve, solta, rir de desgraça, rir de filme bobo, cult-pseudo-intelectual, rir de nada. Gostaria de morar perto do mar, ter uma criança pra olhar, um amor, melhor quatro amores, um para cada estação do ano. Bem que eu queria ser menos instinto e mais razão, mais sóbria e menos louca, menos íntima e mais éxtima.
Ah, eu gostaria mesmo de ter uma mansão, um carro de um milhão, viajar no verão e viver de pensão. Bem que eu gostaria de saber rimar como Fernando Pessoa, ter uma roupa diferente para cada humor, chorar todas as noites e continuar a mesma.

22 de jun. de 2010

Cabelos vermelhos

Por Letícia Rossignoli e Natalia Dias

Foi na tarde de um dia chuvoso que a vi pela primeira vez. Ela tomava um aperitivo sozinha. Aos homens que passavam por sua mesa, dirigia um olhar frontal e firme. Estava à espera.
Como garçom, eu gosto de analisar os clientes, cada gesto, jeito de sentar, o lugar que escolhem e o que pedem me dão pistas de como a pessoa é. E ela me impressionou. Aqueles cabelos vermelhos, a boca bem desenhada e o modo que a mesma recebia o copo, deixando líquido, língua e saliva comungarem. Era realmente, atraente.
Todos os serviços que me eram requisitados eu os fazia de olhos fixos nela, desde o lavar dos copos ao preparo de um drink. Perder segundos de contemplação me era caro. Eu, infelizmente, lhe era invisível, mas aos outros homens erguia a face, de forma altiva, e penetrava o olhar, como de caçador à caça. A maioria dos homens recusava o papel de presa e a ignorava. Alguns se sentiam tão penetrados que se retiravam ao banheiro à procura, no espelho, do “algo” que tinha despertado um olhar daquele.
Mas havia aqueles que aceitavam o convite que aquele olhar profundo ofertava, sentavam à mesa e passavam alguns minutos conversando. Era como se estivessem trocando segredos, através de códigos em que palavras querem dizer pensamentos inteiros. Porém, sempre saíam da mesa e iam embora.
Na primeira vez que eu vi toda essa movimentação de olhares, bocas, sussurros e saídas, fiquei atônito. Como podem sair desacompanhados? Porque não a levam? Que conversa travavam? Primeiro pensei que aquele encontro no bar, resposta do provocativo olhar, era uma forma de combinar e terminar o que começaram em outro lugar. Por isso, eu a segui. Queria saber se ela era uma mulher que terminava o que começava ou, simplesmente, vinha ao bar fazer troça com os homens que caiam em suas teias.
Ela saía do bar, andava até o ponto de táxi, entrava dentro de um carro e ia até outro bar, em outro bairro da cidade. Se sentava, pedia um drink e o jogo recomeçava. Os cabelos ruivos até os ombros, a coluna ereta não deixando-se reencostar, a cabeça em riste e o olhar firme, forte, convidativo, eram os mesmos. Os homens sentam, conversam e logo vão embora.
Aquilo me pertubava, já tinha montado várias alternativas para que o quebra-cabeça fosse solucionado. Será que ela propunha sexo não-seguro? Não podia ser, duvido que haveria tantos homens, nesta ocasião, pensando com a cabeça de cima. Podia ser, simplesmente, uma conversa em que nada era proposto e, por isso, não carecia de uma continuação. Ah! Mas como eu queria saber das suas conversas! E um estalo me veio: eu posso ser um de seus homens.
Planejei folgar justo na quinta, dia em que era certeza de que ela viria ao bar. Era domingo e minha ansiedade já estava incontrolável. Parecia que a hora não passava. Para tentar me acalmar, corria, corri tanto durante essa semana que emagreci dois quilos.
Na quinta, logo cedo, peguei meu traje mais elegante e fui ao seu encontro. Cheguei mais cedo e sentei em uma mesa à frente da que ela costuma sentar. Pedi um café e o jornal do dia. Fiz uma pose de freqüentador assíduo e a esperei.
O dia brilhoso, com um sol forte e pouco vento. As ruas, quase sempre molhadas, estavam secas e cheias de folhas. Ela se decidia pelo tempo e pelo seu sonho do dia, mas hoje, pela primeira vez, não conseguia entender o significado de seus “oráculos”. Resolveu esperar e, por sorte, dentro de duas horas o tempo fechou, fazendo-a ir para o tradicional.
Chegou com toda pampa que fazia merecer, sentou em seu canto predileto e pediu um drink. Os cabelos ruivos até os ombros; a coluna ereta não deixando-se reencostar; a cabeça em riste e o olhar firme, forte, convidativo eram sempre os mesmos. Não podia baixar a guarda. Sabia que sua beleza era chamativa, e precisava que fosse mesmo.
Ele já não agüentava de espera, ficou inseguro e pediu um drink. Foi ao banheiro, molhou o rosto, olhou no espelho e falou: ‘Você consegue!” A timidez à frente dela era atropelada pelo seu encanto.
Voltou à mesa com um ar mais brando e tentou se acalmar. Virou para acender um cigarro e eis que, de repente, ela chega. O cabelo ruivo e esvoaçante, seus lábios, completamente delineados, estavam molhados como se estivessem acabado de beber água.
Enquanto aguardava o drink, um rapaz, um pouco desajeitado e tentando ser elegante a cumprimentou, perguntou se podia fazer companhia. Ela sorriu em um tom meigo e consentiu.
Eles se entreolhavam, porém os olhos se cruzavam desviavam rapidamente. Ele tentou puxar algum assunto:
- O que você faz da vida?
Ela sorriu e apenas disse:
- Me diga você o que quer que eu faça da vida.

Três músicas

Por Leonardo Bortolin Bruno

“Zezinho tinha uma sanfona. Tocava lindas melodias sobre o azul do céu.
Altamiro tinha um clarinete. Tocava lindos choros sobre o verde do campo.
Tião tinha uma viola. Tocava lindas modas sobre a presença de Deus.
Um dia eles se encontraram e tocaram lindas músicas sobre seus sonhos.
Elas foram chamadas de as três Valsas.
Valsa do Minuto, Valsa do Tempo e Valsa da Vida.
Desde então, suas vidas não foram mais as mesmas.
Assim que acordavam, pensavam sobre as músicas.
O sentimento era de amor e dúvida. Os sonhos viraram músicas.
Mas músicas não podiam ser sonhos.
Zezinho quase sem conseguir dormir, foi atrás de Tião. Que tinha ido atrás de Altamiro.
Conseguindo se encontrar, os três se puseram a falar.
Depois de muita conversa, chegaram à conclusão que seus sonhos eram músicas.
Tudo foi transformado em vida, tempo e minuto. E a cada sonho, novas músicas.
O azul do céu, o verde do campo e a presença de Deus faziam parte das três valsas.
As valsas da alma.”

Três músicas

Por Matheus Marins Alvares

A primeira nota vem do piano de Chopin. Naquela sequência embalada, o de camisa verde se separa do resto e termina de engolir seu doce. Sente um bem-estar danado, a luz no ambiente é opaca, mas ele vê cores mais brilhantes, muito brilhantes. E pensa que Chopin possuía quinze dedos em cada mão. Extasiado, encontra um coelho branco brincando com as cores no meio da sala.
Mal o pianista termina suas notas, entornam na sala acordes de Just Like Heaven. E o de vermelho se destacou e jorrou pela veia um bocado de heroína. Euforia, calor e conforto o fazem mesmo se sentir Just Like Heaven. O mundo pende por um fio no qual ele dança, sapateia, salta e urra aquilo que lhe apraz aos três ventos que saem do ventilador. O que vem depois não importa, pensa.
O que vem depois é a poesia nos versos de Arnaldo Antunes. É quando o cara de azul se solta para embeber mais um pouco de benzina no paninho e sorver outro vale milhas e milhas de viagem de três minutos, é para onde? Paris? Acapulco? Novo México? Marte? Lua? Sol? Sala de estar. Está consumado.
Acaba a última música da playlist, fim. E eu, o de branco, lembro-me que sou a soma daqueles três. Não percebi em quantas partes me despedacei e quantas colorações deixaram escapar entre cada viagem. Sei que restou apenas a mistura de três cores primárias no que era tanta, tanta vida que dava inveja ao arco-íris.
E o de verde está paquerando uma pedra de crack. A vida se esvai contraditoriamente. Minha camisa vai ficando lilás...

Falo de um lugar que não cabe aqui

Por Letícia Rossignoli

O final do verão tem muito de melancólico. Acabo de escrever um perfeito lugar comum. Porque todas as pessoas, com as suas máximas diferenças, sempre em algum momento sentem “algo” que as fazem transcender no tempo e no espaço. Seria, como eu acabo de escrever, somente um lugar comum que está encharcado de emoção, transbordando sensações das quais eu não requeri que as sentissem, simplesmente vem.
Eu podia ter começado o texto num tom sociológico: “No mundo pós-moderno, onde as tecnologias atravessam nosso modo de sentir o tempo e o espaço, o indivíduo está se tornando frígido quanto às emoções que nos são intrínsecas... blá blá blá” Quero dizer algo que não se racionaliza. Sabe aquele final de tarde em que você olha o céu num degradê de cores e um sentimento te envolve? E toda vez que você se vê com esse quadro à sua frente, novamente a sensação é sentida. O camarada da roça, o executivo instalado no seu arranha-céu, a dona de casa em meios às tarefas do lar, o velhinho sentado na praça vendo o dia passar, todos eles... sentem! Cada um tem o seu lugar comum, que no seu íntimo é o lugar do efeito.
Será que estranhamos quando nos percebemos como um corpo que sofre efeitos, e não mais um corpo em ação? Sim, somos sujeitos! Acreditamos no relampejar e não no relâmpago. Ora, ora e quanto ao lugar e o tempo que entrelaçados se alojam em nossas almas e não discrimina cor, sexo, religião? É só ser humano.
Mas recusamos, às avessas, o convite da transcendência. O sentimento que nos toca não tem origem no deleite, mas não convêm dizer que é amargo. Por que não deixamos que esse momento se estenda? Comungar com algo que não requer de nós nenhuma linguagem oral ou corporal, é gratuito. Será que um monge tibetano entenderia melhor o que questiono?
Falo de um lugar que não cabe esse texto. Não me ensinaram na escola nada a respeito, foge à norma. O foco se encontrava em saber a estrutura do hidroxicarbono-propil. Ficamos frígidos. Se por acaso eu me virar e perguntar para a pessoa que está ao meu lado sobre essas tais sensações que nos penetram, eu seria considerado louco. Ou, por misericórdia, a outra pessoa destilaria um “sei lá” reprovatório, como se falasse: “isso é pergunta que se faça!” Mas como um argumento de convencimento, poderiam me dizer: “mas também, perguntar isso a um estranho, o mínimo é chamá-lo de esquisito.” Se para conversar sobre isso é pré-requisito a intimidade, o que podem me dizer sobre relacionamentos entretecidos no ventre ou construídos ao longo da vida em que em nenhum momento tal conversa foi estabelecida, nenhuma sílaba proferida?
Como eu queria conversar com um monge tibetano! Seria como um navio S.O.S. que viria me resgatar da “ilha-mundo” da tagarelice. Meu Deus, um mundo tão vasto e nós tão pobres para experimentá-lo. Só sentimos aquilo que permitimos que seja vivido.
Os finais de tarde com o seu céu num degradê de cores irão continuar a me penetrar, o efeito é de um cálice transbordante. E hora sim, hora não, irei continuar insistindo em saber o por quê de tal experiência. Esta mal educada que me invade sem pedir licença. O importante é não viver de cálice vazio.

21 de jun. de 2010

Começar de novo

Por Viviane Roux

Tenho um encontro. , uma vírgula depois do ponto mesmo subvertendo as regras chatas da gramática, mas preciso me desculpar com o leitor pela palavra “encontro”. Sei que o tema aparece com frequência em minhas narrativas e mesmo correndo o riso de parecer repetitiva - e chata - torno a usá-la. Tenho um encontro.
Hoje é diferente. Meu rosto está limpo, enfim limpo, como bumbum de neném. Comecei um processo há um tempo de lavar essa minha cara. Na primeira vez enchi minhas mãos com água gelada e joguei no rosto, como um susto. Com o susto algumas rugas se formaram e fiquei um longo período “agüentando” esses traços marcando o meu rosto. Qualquer um que me visse enxergava essas marcas, havia um vinco fundo na testa e os dois olhos abaixo, cansados no meio de olheiras.
A máscara que eu havia usado por tanto tempo começou a se desmantelar. Sujou bastante meus travesseiros em gotas salgadas durante o longo processo de me deixar. Nosso apego era tanto (a máscara me amava), que um dia, esquecendo-me dela, me peguei rindo em um reflexo no vidro, quem é essa? Já não me reconhecia sem ela e foi preciso rever dezenas de fotografias e cartas para lembrar onde exatamente ficava cada expressão que me aprisionava.
Mesmo borrada e feia, aquela maquiagem grudara em mim de tal forma que nem o mais profundo desejo de me ver livre dela conseguiu demovê-la. E foi um negócio de comprar demaquilante importado, leite de rosas e até álcool. Não me incomodava esfregar na pele qualquer possibilidade de me livrar daquelas tintas.
Vendo que por teimosia ou qualquer coisa ruim que não passava, aquele grudo não saía do meu rosto (logo ele que é tão bonito) , acabei por aceitar aquela situação. Não que eu exibisse feliz aquela máscara, pelo contrário, ela me doía. Mas passei a conviver com ela, estava ali, quem se esforçasse enxergava e confesso que eu já me sentia bem pesada com o que andei colocando por cima para escondê-la.
Ao sair todos os dias no sol, chuva, ao me submeter a esse processo que chamam tempo, reparei que a máscara foi caindo. A ruga da boca se desfez, revelando um sorriso inteiro, havia tanto tempo que só o dava com um lado da boca.
Minha pele está lisa, saudável, pronta para ser maquiada novamente mas duvido que o faça por agora, tenho um rosto lindo, seria injustiça com esses traços que herdei de vovó, escondê-los.
Acordei antes do horário usual. Tomei banho quente, lavei o rosto com sabonete líquido com cheiro de cravo. Após o banho passei um algodãozinho embebido com leite de colônia. Não tenho rugas. Rosto liso.
Tenho um encontro hoje e vou com a alma, digo, com a cara lavada.

16 de jun. de 2010

Distâncias

Por Matheus Marins Alvares

Entreolharam-se ao se cruzarem na descida do largo e, dez passos adiante, ele olhou para trás buscando fitá-la. Dez passos adiante, ela olhou para trás na direção dele. A vinte passos de distância, os dois trocaram um olhar desacreditado de ter sido retribuído. Logo o contato visual cedeu e os dois se afastaram numa velocidade de dois passos por passo. Os pensamentos na direção oposta, indo um de encontro ao outro com avidez pelas suas verdades. A distância entre os pensamentos diminuía. Entre os corpos, aumentava constante. A distância que separava o pensamento dos dois foi extinguindo, extinguindo, até que cessou de haver. A dos corpos foi aumentando, aumentando, até o infinito de nunca mais. Os pensamentos se juntaram e formaram um só, ficando à média distância entre cada corpo que lhe pertencia. Os corpos ficaram separados eternamente, sem complemento e sem pensamento, lamentando não terem feito qualquer coisa à distância certa.

Uma voz chamando meu nome

Por Júlia Câmara

Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1968, numa daquelas esquinas proféticas de Paris, o filósofo Jean-Paul Sartre discursara, no auge do fervor, a favor da revolução e de uma existência mais humana. Houve um instante de emoção entre nós com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula de tarde para me conhecer melhor. Fiquei em estado de choque, jamais imaginei que aquela menina, dos olhos amendoados e traços tão bem delineados pudesse sequer olhar para mim. E hoje ali estava ela, por alguma ironia do destino, pairada em minha frente. Nenhuma manhã de inverno jamais pareceu tão perfeita. Seu cheiro adocicado penetrava minhas narinas, e me fazia sorrir. Eu podia sentir cada um dos músculos do meu rosto se movimentando, a cada gesto dela. Claire olhou seu relógio e se levantou rapidamente dizendo que estava atrasada. Ela me esperaria às duas da tarde na esquina que ficava entre nossos colégios. Sinceramente, eu não conseguia assimilar os acontecimentos daquela manhã. Vivi momentos que simplesmente foram inacreditáveis. Salvei Claire, a menina dos meus mais profundos sonhos, de um grave acidente. E passei mais de uma hora observando seus olhos, brilhantes, agradecendo-me por tal feito. Pura coincidência, ou seria sorte? Eu meramente estava no lugar certo, no instante certo. Paguei a conta e em seguida comecei a caminhar lentamente em direção ao meu colégio. Faltava uma hora para o início da aula de Literatura do professor Henry. Todavia eu precisava chegar um pouco antes, necessitava contar tudo o que aconteceu naquela manhã. Desde a morte do meu pai, Henry se tornara o melhor amigo que alguém podia ter. Estava sempre de prontidão para me escutar e me dar os conselhos necessários para erguer a cabeça e seguir em frente. Quando cheguei ele estava conversando com um aluno do segundo ano. Me viu, acenou e pediu para esperar no sofá. Dez minutos se passaram e Henry apareceu, sorridente e bem humorado como todos os dias. Me ofereceu alguns biscoitos e em seguida perguntou o que me trazia ali mais cedo do que o normal. As borboletas no meu estômago começaram a rodopiar novamente, só ao mencionar aqueles momentos. Eu narrava os acontecimentos com uma abundância de detalhes e assim ia revivendo cada instante dentro da minha cabeça. Quando acabei de relatar, instantaneamente, senti meus músculos imóveis uma vez mais. Henry sorria intensamente para mim. Ele sabia o que eu sentia por Claire desde o primeiro momento em que a vi, alguns meses atrás. As poesias, que escrevi para ela quando a admirava na saída do colégio, estavam guardadas com ele. Um professor de Literatura sempre aprecia poesias, não? Esse era o único motivo plausível pra o desejo dele de guardá-las. Porém ele insistia em dizer que algum dia eu iria precisar daqueles pedaços de papéis, afirmava que teriam um valor muito significativo no futuro. Segundo ele, o destino e o acaso colocariam aquela bela menina dos cabelos cor de mel em meu caminho. Ela parecia tão inalcançável para mim, que eu costumava achar graça quando ele declarava tal asneira. No entanto hoje tudo, finalmente, parecia fazer sentido. Henry me deu alguns conselhos e desejou-me boa sorte. Abracei-o forte e agradeci por todas as coisas que estava fazendo para me ajudar. As horas demoravam para passar. Cada minuto parecia uma eternidade. Depois de muito ansiar pela hora de ir embora, o professor finalizou a aula e nos dispensou. Passei velozmente no banheiro. Olhei meu semblante no espelho, ajeitei um pouco meu cabelo que estava sempre bagunçado e dei um sorrisinho sem graça e nervoso. Saí pela porta lateral e passei no jardim. As flores não estavam muito bonitas, porém havia uma que reluzia no meio de todas as outras que encontravam-se sem cor. Arranquei a flor mais bela e de longe pude sentir seu perfume. Caminhei ofegante e nervoso em direção à esquina onde ela me esperaria. Eu estava dez minutos adiantado quando cheguei. Apoiei meu peso em um muro de um prédio ao passo que tentava parar de pensar, mas tudo o que se passava no meu subconsciente era mais forte do que qualquer uma das minhas vontades racionais. Meu coração palpitava rapidamente, parecia que estava prestes a explodir dentro do meu peito. Minha boca estava seca e meu corpo suava frio. Era tão difícil me conter, mas eu precisava, não podia parecer um tolo. Vinte minutos se passaram e ela não aparecia. Meia hora e nada. O desespero começou a dominar cada célula do meu corpo e em seguida fui tomado por uma tristeza profunda. No momento em que finalmente aceitei que ela não iria aparecer, comecei a me culpar por ter acreditado no destino. Ele nunca tinha movimentado nada a meu favor, porque isso iria acontecer justamente naquele momento? Abaixei a cabeça e virei as costas. Nesse segundo escutei uma voz chamando meu nome e me virei. Era ela, correndo e sorrindo do outro lado da calçada. Podia traduzir o movimento dos seus lábios me pedindo desculpas. Ela se aproximou e parou exatamente na minha frente. Doce e sorridente. Me deu um beijo estalado na bochecha. Senti meu rosto corar e fiz o impossível para que ela não percebesse isso. Entreguei a flor e ela agradeceu, gaguejando um pouco, sem saber o que fazer. Quando percebi, estávamos caminhando perto do Jardim Botânico, então como era um dos meus lugares preferidos, perguntei se ela gostaria de ir comigo. Ela afirmou que sim com a cabeça e abriu um sorriso maravilhosamente perfeito, depois disse que era um dos lugares que mais gostava de ir também. Claire não parava de falar, sentia que ela estava um pouco envergonhada, mas que sabia lidar com isso ao passo que não parava de me fazer perguntas. Pude perceber que ela gostava da minha companhia e se sentia confortável comigo. Assim que chegamos na parte mais bonita do lugar, meu lugar preferido em todo o mundo, peguei-a pelas mãos e tomei a direção do lago. Chegamos perto da beira e me sentei na grama, ela fez o mesmo. Nossas conversas eram tão boas e divertidas, parecia que já nos conhecíamos há algum tempo. Eu não conseguia parar de sorrir para ela. Meus músculos do rosto já estavam dormentes, não sentia mais nada, além de felicidade. Ela me agradecia quase a todo instante pelo feito da manhã e disse que ter me conhecido, além do fato de salvar a vida dela, foi uma das melhores coisas que podia ter acontecido naquele momento em sua vida. Eu concordei com tudo o que ela falava e ela sempre sorria. De repente ela se levantou e sentou bem perto de mim, quando começou a se aproximar eu não sabia como agir. Só pude sentir o que estava acontecendo quando seus lábios aveludados encostaram nos meus. Eu sorri e suspirei profundamente. Meu corpo estava petrificado e todos os meus sentidos falhando. Ela sorriu sem jeito e encostou sua cabeça em meu peito. Três horas se passaram e ali estávamos, conversando e nos conhecendo. A coisa que eu mais fazia, além de gaguejar algumas vezes seguidas, era sorrir. De repente, um pouco assustada, ela olhou o relógio e disse com tristeza que estava na hora de ir. Eu concordei e disse que a levaria em casa. Andamos por mais ou menos vinte minutos. Quando chegamos na porta já estava anoitecendo, eu podia ver a lua um pouco escondida entre as nuvens iluminando o céu. Ela me olhou por alguns instantes imóvel e perguntou quando iríamos nos ver de novo. Eu disse que no dia seguinte a estaria esperando no mesmo lugar, pois tinha algo que a pertencia há algum tempo e estava na hora de entregar. Ela não entendeu nada e obviamente ficou curiosa, mas prometeu que esperaria até o dia seguinte. Por alguns intermináveis instantes fiquei sem saber como agir. Fiz movimentos um pouco atrapalhados e me aproximei para me despedir com um beijo estalado nos lábios. Acho que a partir desse dia começou a ser traçada uma bela história de amor, que duraria muitos anos. Finalmente as poesias, que durante um bom tempo, estiveram tão bem guardadas, teriam seu destino certo.

15 de jun. de 2010

O tempo que jamais vou esquecer

Por Isis Mesquita

É uma bela tarde esta de hoje em Paraty, o mar está particularmente lindo com o sol criando padrões luminosos nos lençóis aquosos, parecem mais diamantes. A única coisa que me incomoda é o picolé. Não sei por que a idéia de comprá-lo se sei que não tenho a competência de comê-lo quando venta, fico coberta por ele, mas o que parece é que o único lugar que fica sem é exatamente minha boca, mas enfim, isso não me atrapalha. Eu sei que a praia é o último lugar que deveria estar. Irei ouvir uns sermões do papai quando chegar em casa. Já posso até imaginar suas palavras.
Hoje me sinto tão nostálgica que as minhas memórias parecem até presentes. Fico me lembrando daquele verão que passamos na fazenda do vovô Augusto, era tudo tão perfeito, antes da minha vida se transformar nesta bagunça. A mamãe bebia aquele chá de tom ocre que cheirava à naftalina. Não entendo como ela podia sentir prazer em beber aquela joça, mas, como ela mesma dizia, “gosto não se discute”, não mesmo, sobre aquele chá eu nunca me atreverei a discutir.
Eu gostaria que o tempo tivesse pausado ali, ou que eu tivesse aproveitado mais aqueles momentos, eu me culpo, confesso que sim. Deveria ter ficado mais tempo com todos eles. Mas não havia como imaginar o que estava me esperando na primavera seguinte. Quando disse ao vovô que voltaria eu realmente pretendia. Mas a vida prega peças, é traiçoeira. Ele me manda cartas todas as quintas-feiras, não importa o que aconteça eu sei que terá uma carta em minha mesa quando chegar do colégio.
Eu fico sempre contando as historias daqueles dias para dona Jucélia, e ela até tentava me encorajar a voltar. Mas sempre como um choque de realidade ela se lembra do aconteceu e acaba me pedindo desculpas, mesmo que eu diga que estas são desnecessárias. Ela não sabe, mas eu mesma já cogitei voltar depois do que aconteceu, quem sabe eu volto. Acho que a mamãe iria gostar, mas eu não tenho vontade de fazer o que a deixaria feliz. Ela não pensou em nós quando fugiu com o capataz do vovô naquele mesmo verão. Fico pensando se deveria parar de descontar isso no pobre vovô Augusto, afinal ele não teve culpa, mas me lembro, eu sou apenas uma menina infantil de 16 anos que sente raiva e muita saudade de sua mãe e que apesar de nunca esquecer e sempre querer voltar àquele mesmo verão, queria que ele nunca tivesse acontecido. Foram os melhores e piores tempos de minha vida, e provavelmente jamais serei capaz de esquecê-lo.

13 de jun. de 2010

Onde estavam minhas estrelas?

Por Amanda Cinelli e Lana Mayer

Já faz treze dias que estou em Istambul. Era noite quando me trouxeram do aeroporto, sem dizer para onde estávamos indo. O bilhete que tinha em mãos possuía algumas frases para serem ditas em caso de emergência. Estava tudo em turco, certamente, mas de nada adiantava, pois eu não sabia como pronunciar tais fonemas. Talvez fosse por isso que o silêncio imperasse naquele carro velho e frio no qual estava sendo transportado. Um senhor de meia idade parecido com algum taxista muçulmano nova-iorquino dirigia, olhar para ele era como sentir-se em casa; a mudança não estava clara até então.
Me fixei num ponto: o encosto de cabeça do motorista. O estofado de cor escura era mais confortável que o branco reluzente da neve que imaginava estar do lado de fora. Não tentei. Não demorou muito para que chegássemos ao destino que em breve iria conhecer. O carro parou, o motorista se esticou na cadeira, balbuciou algumas palavras e, num ato estranho esticou o braço para trás e puxou o pino da minha porta. O estalo da tranca se abrindo foi tão assustador como assistir ao velho cachorro da família ser atropelado quando tinha oito anos e perceber que nunca mais abraçaria Charlie ao chegar da escola. Meus sentimentos borbulhavam no estômago e o cérebro transbordava em conexões. - Quantos segundos se passaram? - pensei. – Acho que foram horas.
Abruptamente a porta se abriu. O motorista não tinha o mesmo olhar familiar e automaticamente percebo que seu jeito brusco de falar constrói verdadeiras palavras turcas, não somente um inglês enrolado no sotaque fechado do qual estava acostumado. A língua não era a mesma, a neve não era a mesma, o ar não era o mesmo. Olhei para o céu: onde estavam minhas estrelas?
Não estava preparado para o reconhecimento do território. Peguei as malas, que já estavam no chão, e corri em direção ao longo corredor do meu suposto novo prédio. Escadas e mais escadas , o elevador estava quebrado. Por um momento pensei não haver um apartamento para mim. Até que o motorista gritou, era lá. Entrei, ele jogou as chaves na minha direção e antes que eu pudesse pegá-las bateu a porta e nunca mais o vi.
“Sozinho em Istambul pela minha própria contra-vontade”, taí um bom título de filme que representasse meu dilema de então. Infelizmente não era filme, era minha vida e os dias não passariam em takes de um segundo como normalmente. Tentava me acostumar com a idéia de viver quinze vezes vinte e quatro horas. Eram trezentas e sessenta horas para tentar respirar do mesmo jeito que respirava antes, e então começar uma vida que não me pertencia.
Eu estava contando os segundos para sair da Turquia, não era este o meu objetivo a visitar a Europa. Definitivamente não simpatizava com a cultura muçulmana e nada me atraía naquele lugar. Nunca tive espírito de viajante e curiosidade por culturas exóticas. Todo o dinheiro que juntei em alguns anos de trabalho se destinava a bancar minhas aventuras na Inglaterra no festival de Wegs, o maior festival de rock do inverno europeu, onde eu assistiria aos shows de minhas bandas preferidas, Les Ecleticques e Down With the Fall.
“O Inverno mais rigoroso do século!” Assim reportavam as manchetes dos jornais. Uma densa nevasca encobriu a Grã-Bretanha, dificultando aterrissagens por duas semanas. “Acidentes climáticos ameaçam acabar com a humanidade neste século XXI!” Meu vôo para Londres foi desviado e vim parar em Istambul, sem chances de chegar tão logo à Inglaterra.
As previsões climáticas desta vez parecem funcionar e é provável que daqui a dois dias eu deixe esta cidade rumo à capital britânica. O festival foi cancelado e minha viagem tomou uma direção completamente inesperada.
Ao contrário do que imaginei, os dias realmente passaram em takes de um segundo e minha estadia em Istambul foi extremamente prazerosa. Já ao chegar ao hotel, bancado pela British Airways, entrei em contato com um mundo novo. Hoje, a dois dias da partida, penso que até das escadas e mais escadas eu vou me lembrar com nostalgia. O elevador foi consertado, mas tive medo de usá-lo e permaneci subindo para meu quarto todos os dias exaurido, mas contemplando os belíssimos mosaicos da decoração dos pisos.
Vivi experiências únicas nos passeios pela cidade e em lugares magníficos, como o estreito de Bósforo, que jamais imaginei conhecer e não conheceria não fosse por este enorme acaso que me colocou no meio de um grande acontecimento climático deste século.

12 de jun. de 2010

Hadija, em Istambul

Por Viviane Roux e Leonardo Bortolin Bruno

Já faz treze dias que estou em Istambul. Era noite quando me trouxeram do aeroporto, sem dizer para onde estávamos indo. A partir do momento em que saí do aeroporto, percebi que estava onde queria. As luzes, as ruas, as pessoas, tudo me veio à cabeça como aquele ano. Mas desta vez eu sabia que seria diferente, por mais que não soubesse onde estávamos indo, sabia que estava onde queria.

Esses dias que se passaram foram um tanto doloridos. A busca não tinha resultado em nada e o máximo que consegui foi ir até o bar de Islail, para lá tomar carbel e deitar-me olhando para o céu.

Hadija me deixara inquieto desde aquele ano; sua cítara estava dentro de mim e sua sonoridade era minha música desde então. Pedia aos taxistas para me levar a qualquer lugar. Pelo caminho, olhava atentamente cada ponto dessa cidade anormal em busca do prazer que tinha tomado minha consciência.

Era noite quando decidi sair a pé pelas vielas do chamado centro comercial. Já não agüentava mais cheirar ácido da minha roupa que não trocava há dias. Sentia que aquele lugar me levaria a Hadija e sua cítara. Entrei em um bar que era como um cabaré de lindas mulheres turcas e ali sentei para beber novamente carbel. Ao meu lado, um marroquino me ofereceu haxixe em troca de pouco dinheiro. Animei-me com a idéia e fomos para fora do bar pegar a mercadoria. Entramos no seu carro e rodamos quase toda a cidade para pegar este verme que me levaria até o céu. Por ironia do destino, fumamos dentro do carro e o que aconteceu foi um total abandono daquele homem, me deixando num canto da cidade desconhecido por mim. Agora era eu e minha cabeça. Que mal conseguia organizar as idéias, porém o corpo ainda clamava por mais. Era esse mais apertado na garganta de qualquer um que estava ali numa praça. Lembrei-me da noite de 2007, quando conheci aquela mulher e sua sonoridade. A mesma desordem mental me ocorria, misturada com o desejo de ir adiante, buscar minha cólera por tê-la deixado. Agora exatamente, sei o que falar sobre meu ser. Impaciente, possuído, apenas habilitado a pensar. O que soa estranho é esse eu que fala, mas o eu que escreve, ou melhor, o eu da noite. O momento. Ali fiquei por horas.

Quando amanheceu, percebi que estava sem dinheiro algum, contudo me encontrava em um lindo vale montanhoso, na beira de um riacho. O lugar me trouxe uma sensação incrível, era como se a melodia da cítara estivesse a poucos metros.

As cores daquele lugar eram incríveis. Se Monet o tivesse visto, teria deixado a França. Fui até o riacho e com a mão em concha busquei um pouco de água. O líquido gelado chegou ao meu estômago e vomitei. Uma gosma clara com cheiro de carbel. Fui tomado por uma sensação incrível, convencido de que eu só poderia estar aqui, mesmo sozinho, mesmo sem dinheiro.

Num impulso, me joguei no riacho e, depois do choque do meu corpo quente com a água fria, vomitei de novo. Vomitei o haxixe, o avião, o taxista, Hadija e sua cítara, meus enganos, as mentiras e toda aquela saudade. Sentei tremendo de frio até o vento me secar.
Que direção tomar quando não se tem direção? Direita ou esquerda não importa, ninguém me espera, ninguém sabe. Somos eu e minha procura.

Segui o curso daquelas águas transformadoras e me deparei com um velho sentado. Maltrapilho e de barba cinza, parecia que estava ali há anos. Perguntou-me com sua voz fraca:

- Aonde vai, forasteiro?

- Não sei, embora sinta que falta pouco para chegar.

Quando estava me virando, o velho atirou umas folhas que estavam em suas mãos na água e disse:

- Como você, as folhas não sabem para onde vão, mas continuam a seguir seus destinos e eu lhe mostro onde é – apontou para o horizonte.

Intuí que ali o riacho devera desembocar em um grande lago ou talvez no mar – embora o riacho faça curvas, caia em cachoeira ou se abra em afluentes. No final de tudo, é para lá que elas devem ir.

Permaneci um tempo pensando no que o velho dissera enquanto tomava uma difícil decisão: ou continuava ali, afastado da cidade, mas perto da paz espiritual que o ambiente proporcionava, ou voltava para a cidade aonde a possibilidade de encontrar Hadija era maior.

Um pássaro amarelo-claro e seu canto me lembravam a cítara. Segui com os olhos e fui andando atrás dele. Às vezes o perdia de vista. Aos poucos, umas casas iam surgindo. Voltei para o calor de Istambul. O canto do pássaro foi se tornando imperceptível, misturado aos sons da cidade. De repente, o perco de vista. Olho para todos os lados até que ouço um som familiar. Corro, corro demais, corro. Primeiro, vi as mãos, acariciando as cordas. Depois, o cabelo escuro e, por último, os olhos marejados. Um sorriso de saudade, mas ficamos onde estávamos, precisaríamos esperar um pouco mais. Hadija precisava acabar uma música.

11 de jun. de 2010

Está na hora, já posso senti-lo

Por Matheus Marins Alvares


Está na hora, já posso senti-lo chegar.

Mal o ponteiro das horas encontra o número sete e eu arrumo minhas coisas de volta para casa. Despeço-me do faxineiro e do ator coadjuvante que ainda estão no set de filmagem e parto para tomar o ônibus que cruza lentamente e sem paciência a cidade. Sinto a tensão no rosto de cada operário, é o fim de mais um dia na cidade grande. Vão tornar à casa, rever seu par, seus filhos, ou apenas tomar um banho e jantar sozinhos no conjugado que tem o aluguel quase sempre atrasado, rotina essa que cumpro com fidelidade. Depois do jantar, ligo o computador e me sinto só. Abro o programa de chat e, pontual, revejo meus amigos virtuais como se nosso encontro já estivesse marcado desde a noite anterior. A mulher que apanha do marido quando este chega bêbado no apartamento, o jogador de RPG , a menina que tira a roupa na frente da webcam sem a menor censura e a moça que tecla comigo há umas duas semana mas que já é até íntima. Todos estão ali, prontos para trocar ideias como qualquer sujeito o faria no bar após o trabalho. É a moça que conheço há duas semanas quem vem falar comigo ligeira, logo que me vê logado. Diz que me conhece há pouco tempo, mas se sente bem de conversar. Confidencia que anda traindo o noivo com um eletricista que vai à sua casa há duas semanas para consertar a fiação do chuveiro sem conseguir. Conto do meu dia no serviço, filmando um novo curta que deve estrear pelo fim do ano. Digo ainda que andam preocupados com o ator principal, que cheira uma carreira após a outra sem se preocupar com a sua carreira verdadeira. Ela ri da piada de humor negro enquanto enxoto os mosquitos que atazanam o verão paulista, e ao mesmo tempo em que o vizinho ao lado deve estar acendendo um cigarro enquanto xinga o juiz no canal do futebol, impropérios que a parede me conta todas as vezes.

Minha companheira de chat se chama Manuela e não mora muito longe daqui. Ainda não conta com cabelos brancos nem rugas. Trabalha como recepcionista numa loja de perfumes e sonha conhecer o mundo. Diz que se identifica muito comigo e que quer me conhecer pessoalmente. Deve estar cansada do eletricista.

Horas depois, bebo um copo de leite e vou deitar. Não consigo dormir, o sono já foi embora, quiçá nem chegou. A imagem da mulher do chat não sai da minha cabeça e, quando me dou conta, voltei para o computador mas ela já não está. Converso com o garoto do RPG, que está feliz por ter evoluído no jogo – e ganhou uns quilos a mais quase sem perceber. Quando estou conformado para voltar à cama, Manuela reaparece no chat. Trato de não perder tempo e digo a ela tudo que me vem à telha. Marcamos de nos encontrar um dia depois, num restaurante no bairro dela. Não pensei que fosse ser tão fácil, durmo tranquilo.

No dia seguinte, peço para sair mais cedo no trabalho, digo que tenho compromisso sério e prometo compensar a hora chegando mais cedo para a edição quando acabarem as filmagens. Tomo banho no camarim, coloco minha roupa mais bonita e um sapato de couro semi-novo que o antigo inquilino esqueceu quando deixou o conjugado. As intenções de Manuela me pareceram claras na nossa última conversa e a noite promete ser proveitosa. Passo o perfume que peguei emprestado com o ator principal. Não podia chegar lá cheirando a colônia Sendas. Tomo um taxi para escapar do suor incrustado na pele e nas roupas dos velhos trabalhadores da lotação. Chego adiantado onde marcamos e resolvo esperar do lado de fora, um restaurante chamado Canto do Boi. Vejo que muitas pessoas moram nas redondezas. Suas casas se revezam com comércios, geralmente bares. Não conhecia aquele lugar, Rua José Pereira. Me senti incompatível, posto que não era um canto bem iluminado e os transeuntes tampouco andavam de forma muito apresentável. Já estava ansioso pelo encontro e, Manuela, atrasada há dez minutos. Achei que não fosse aparecer, ponderei por ir de volta para casa e para minha rotina. Foi quando meus olhos esbarraram em seu rosto, mais bonito que nas fotos, espiando o relógio no pulso e a se aproximar indecisa se era eu ou não. Sorri confirmando minha identidade, no que fui retribuído vendo a cova no sorriso a qual tanto reparei em fotografias. Ela era morena, cabelo curto, um metro e setenta mais ou menos. Chegando perto, me deu um abraço sincero e caloroso, propôs que pegássemos logo uma mesa. Me senti satisfeito.

Ela Quis se sentar nos fundos, num canto reservado. Aceitei. Passava sua mão na minha e dizia estar contente. Conversamos sobre nada e de repente sua língua estava dentro de minha boca, nossos pratos sequer haviam chegado. Entrei no clima, e estávamos bebendo um vinho barato, que era o único que era servido. A comida chegou, estava à altura da quentinha dos peões carregadores lá do serviço, e o papo já fluía de forma que eu podia me abrir sem remorso. Contei mais dos meus pais bem sucedidos e da carreira que resolvi tomar, de minha irmã mais velha que se casou e de como eu gostava de trabalhar no estúdio.

Sem terminar o frango, ela levanta e diz que vai no banheiro, no que me dou conta novamente do mundo ao nosso redor. O restaurante está vazio e o cara do outro lado do balcão me espia de esguelha enquanto lava a louça com cara de quem cheirou e não gostou. O lugar já está fechado e concluo que somos os últimos clientes. Começo a pensar que poderei propor algo mais a ela após pagar a conta. Manuela se demora longos 5 minutos e, mal a vejo de volta, recebo uma porrada na cabeça. Caio no chão de bruços e não custo a sentir sangue escorrendo com pressa atrás da minha orelha. Lá de baixo posso ver. São três homens armados junto dela. Vestindo chinelos, bermudas em farrapos e camisetas furadas. Uma toda preta, outra com um escudo de time do lado esquerdo do peito, e uma terceira com a cara de um deputado estampada. Tento alcançar a porta e já começo a enxergar embaçado quando vejo a cabeça do deputado me carregando para dentro de um carro. Manuela não havia marcado encontro apenas comigo, mas também com outros três rapazes, e na mesma hora e lugar.

Quando recupero a lucidez, me vejo numa casa habitada apenas por mim e outros dois homens que não sei dizer se são os mesmos do dia anterior, posto que trajam outras vestimentas. Tento me espreguiçar, mas minhas mãos estão amarradas aos meus pés de forma grotesca, não sobrando nenhum espaço entre esses membros. A posição que sou forçado a fazer me projeta para frente, me colocando de cara com o chão, sem poder sair dali, como uma tartaruga de ponta cabeça. Tenho a boca lacrada também, então apenas posso ouvir. Estão tentando localizar meus pais, imagino que por ter dito à Manuela que tinham dinheiro. Se não conseguirem, disseram que a minha irmã vai servir. Vejo o sol nascer duas vezes na mesma posição, sem água e nem comida. Um homem magro com cicatriz no rosto aparece, me senta numa cadeira e me interroga enquanto um outro está armado, pronto para alojar uma bala dentro dos meus pensamentos. O magro se desespera por não conseguir o contato com nenhum conhecido meu. Tortura-me sem pudor e estou dopado demais para conseguir informar onde trabalho exatamente, coisa que não cheguei a dizer à Manuela, não sei pelo quê.

Ouço que não longe dali outros sequestros acontecem pela voz de criminosos confabulando entre si e fazendo perguntas aos seus reféns, sempre ameaçadoramente e falando ao celular quase que o tempo inteiro. O homem da cicatriz comenta com o outro que está tudo decidido, solta minhas mãos dos meus pés e me guia até um carro. Já não tenho forças para tentar uma fuga aos pulos e me sinto muito cansado. Minhas pálpebras sozinhas pesam mais que meu corpo inteiro, mas chego a ver as outras habitações e muito mato em nosso entorno. No banco de trás, acompanhado de um homem branco e gordo que porta uma pistola, sou levado até um lugar cheio de árvores que fica poucos minutos longe da casa. Não tomam o cuidado de me vendarem os olhos e, no caminho, descubro uma placa que diz “Mirante José Amorim - 5 km”

No que o carro para, sou forçado a deixar o veículo com mãos me guiando pelo pescoço. Paramos poucos metros adiante do carro e, de súbito, sinto como se o magrelo da cicatriz me abraçasse, e logo em seguida recebo uma faca em meu abdômen, que se retira furiosa. “Não serviu pra nada. Pé rapado! Manuela precisa prestar mais atenção com seus pares.” Sinto o chão batendo na minha cabeça e o barulho de motor logo fica distante. Os homens foram embora e, mesmo que minha boca não estivesse lacrada, não conseguiria dizer uma palavra. Sinto algo pulando dentro do meu peito, em frequência perfeita. Vejo muito sangue descer de minhas entranhas, e a batida que vem de mim vai ficando sem vontade de ser. Estou mais cansado, vejo alguém se aproximar. É Manuela, mas não sei se ela está ali, seu olhar parece dizer que lamenta que o encontro que marcamos tenha acabado dessa maneira, finalmente meu peito passa a tocar batida nenhuma e aceito estar morrendo quando um filme finalmente começa a passar toda a minha vida diante de dois olhos indecisos.

Trate de contar sobre Manuela e venha, por favor, buscar esse corpo já sem ânimo e vida nenhuma...

Volto e parece que estive sempre sonhando. O papel à minha frente conta a história de um homem que foi seqüestrado e morreu por um encontro às cegas, seu espírito quis contato comigo e deixou um recado em psicografia direta. Apesar de ter acabado de acordar, me sinto esgotado pelo último encontro e preciso voltar a dormir.

Encontro marcado

Por Isis Mesquita

Já era tarde e eu precisava dormir, já seriam duas noites em claro. Eu estava morta. Preparei meus lençóis e me deitei, não demorou que eu perdesse a consciência. De início negro normal, mas após um tempo que não consigo determinar, podem ter sido horas ou apenas minutos, me vi em um local como um túnel revestido por todas as cores, conhecidas ou não. Tive certeza que havia descoberto o que seria a cor-de-burro-quando-foge em alguma dessas paredes.

A princípio estava caminhando, até que cheguei ao que parecia um buraco, precipício, quando pisei na borda um pedaço considerável de pedra tombou, esperei pra saber mais ou menos a profundidade daquele poço, nunca cheguei a ouvir a pedra cair. Algo me empurrou antes, caí, achei que ia morrer, mas as paredes que de cima pareciam negras afunilavam e exibiam padrões de loucas estampas em toda sua extensão. Isso não poderia estar acontecendo de verdade, não é? Eu fui dormir, tenho certeza, e como posso estar tão lúcida? Tudo parece tão real.

Antes que pudesse continuar meu raciocínio, algo me chamou a atenção, não estava mais caindo e não havia morrido, ainda, agora escorregava num túnel que eu acharia humano nenhum poderia caber, mas aqui estou né. Fechei os olhos e me permiti gritar, gritei mais alto que podia, nem sei se depois disso poderia falar tão cedo. Quando olhei para baixo, para me desesperar, pensar que ia morrer de vez, auto-tortura é comigo mesmo. Parecia que estava chegando ao final, seria a famosa luz no fim do túnel? Tampei meus olhos com a minha mão, e gritei, era agora, queria poder dizer aos meus amigos e família que foi ótimo ter conhecido e convivido com eles.

Mas quando me dei conta parecia que eu estava flutuando, ou caindo tão lenta e delicadamente como uma pluma. Abri espaço por entre os dedos para checar o que acontecia, quem sabe já não morri, né? Mas estava a dois dedos do chão, caí sentada numa grama bem verde, ao lado de uma árvore frondosa, graças a deus não-frutífera, seria um pesadelo se fosse. Quando atingi o chão, recostei a cabeça na grama e ri, na verdade, gargalhei, isso sempre acontece quando fico tensa. Mas lembrei do geral da situação em que me encontrava e levantei subitamente, olhei para mim e ainda vestia meus pijamas.

Olhei em volta, havia a grama, a árvore e um campo aberto, mas estranhamente o céu estava branco, sem cor alguma e não havia sol ou nuvens. Era simplesmente branco, como se houvessem simplesmente esquecido de pinta-lo. Onde eu estou? Eu me perguntei, pensei e ficar ali esperando alguma coisa, não sei o que, nem pense em me perguntar, ia esperar que alguma resposta. Mas achei melhor me levantar e investigar. Andei pelo que pareceram horas, o cenário era o mesmo, um campo aberto de grama e flores, até que ao fundo surgiu o que identifiquei como uma floresta de eucaliptos, não enxergava tão bem sem os meus óculos. Corri pra chegar logo, o que agora me parece estupidez, qual seria a diferença entre andar e correr? Nenhuma, mas eu quis correr. Atravessei rapidamente, não deram nem cinco minutos, pelo menos era o que eu achava, pois quando reparei haviam relógios pendurados nas árvores, e os segundos contavam horas, me assustei com a contagem do tempo e parei, fiquei estática olhando as horas passarem tão rápido, literalmente. Perguntei-me em voz alta: “Então as horas passam como anos?”, e uma voz masculina me respondeu que sim. Virei assustada, não havia ninguém comigo até aquele instante. Era um rapaz, não me parecia muito mais velho do que eu, devia ter seus vinte e um, numa situação que a primeira vista parecia a mesma que a minha, ele também vestia pijamas, talvez um pouco mais surrados que os meus, e pelo conhecimento que ele já possuía, imaginei que estava aqui por um tempo, o que foi uma má noticia, conclui que poderia estar presa aqui, neste mundo desconhecido, fiquei tensa de novo, desesperada era a melhor palavra. Dei um sorriso involuntário de tensão, no qual só a sua boca sorri, um daqueles bem amarelados, enquanto o seu olhar fica perdido e louco, assim como imagino que eu estava. Minha cabeça ficou como um quebra-cabeças e eu não conseguia juntar as peças, só consegui dizer: “Então se eu ficar cinco horas aqui vou envelhecer cinco anos? Não posso completar dez!”. Ele riu, eu também riria, segurou os meus braços e me pediu calma, me disse que encontraríamos a saída. Ele conseguiu me confortar, ate parecia que a gnt se conhecia fazia um tempo, e lembrei que na verdade faziam cinco horas que eu o conhecia né, não sei como ainda tinha tempo para fazer piadas.

Perguntei o seu nome, era João, ele tinha bigodes cheios de uma cor próxima do negro, os olhos castanhos, quase da mesma cor, possuía a pele branca que no frio que estávamos passando ficava rosada, queimada, fiquei encantada, ele era lindo. Ficamos andando, conversando, e eu poderia jurar que estava apaixonada, eu sou bem ridícula. Ele possuía um trejeito engraçado de ficar acariciando sua barbicha, eu ri sozinha. Mas me concentrei, sacudi a cabeça, isso não é hora pra ficar babando o menino, coitado, vai achar que eu sou louca, olha a situação que a gente se encontra e eu apaixonada já, fiquei confusa, pois na contagem tradicional de tempo, não nos conhecíamos por mais de meia hora, mas aqui já faziam dias, então me senti apoiada por esse passar de tempo louco para me permitir sentir qualquer loucura que fosse. Passei um tempo desse jeito, pensando, quando eu olhei para ele, ele me olhava interessado, estava rindo, eu devia estar fazendo caretas. Acho que ele pensou em me perguntar o que era, mas antes que o fizesse, vi uma casa, ela era gigante! As janelas eram enormes de estilo clássico azuis e possuíam grandes cortinas bordô. Os portões da frente estavam semi abertos. O interrompi antes que falasse, já sorrindo, segurei a sua mão e o puxei para corrida, eu estava bem animadinha para corridas, era a segunda vez que o fazia já.

Corremos até a entrada, eu estava sorrindo, ele, apreensivo. Ele soltou a minha mão e parou antes que chegássemos na varanda, eu já estava parada nas escadas. Olhei para ele, ele me olhava fixamente e eu segurei o olhar. Nos olhamos por algum tempo, eu virei a cabeça para olhar a porta e olhei de novo em seus olhos. Decidi que devia ver o que tinha lá dentro, eu estiquei a mão para que ele viesse comigo, por um instante achei que ele ia deixar que eu fosse sozinha, mas ele segurou a minha mão e entramos juntos. Era tudo preto lá dentro, ao contrario do que era do lado de fora, tão branco, aqui dentro era tudo intimidantemente negro, fiquei com medo, odeio o escuro, vejo formas onde não existem, ainda bem que ele ainda estava segurando a minha mão, era mais fácil de alcança-lo. O abracei forte, ele me acariciou para me acalmar, e disse algumas palavras também com o mesmo intuito. Segurou o meu rosto, eu só conseguia ver o brilho dos olhos dele, me deu um beijo no rosto e disse que deveríamos continuar andando. Eu concordei. Segurou a minha mão e desta vez me guiou pelo cômodo escuro.

Chegamos ao que parecia ser uma parede, olhamos a procura de uma porta, mas encontramos apenas uma maçaneta. O que servia perfeitamente pra abrir algo. No outro cômodo havia apenas um baú iluminado no centro. Fiquei com mais medo, tinha medo de ficar e de voltar, pois se voltasse quem me garante que o veria de novo, eu não falei nada, mas o que me pareceu é que não era necessário. Os olhos dele diziam a mesma coisa, Nos abraçamos novamente, mas dessa vez não foi um beijo no rosto. Nos beijamos por muito tempo, parecia mesmo que nós nos conhecíamos há muito tempo! Quando paramos voltamos a nos abraçar, estava parecendo tanto uma despedida, eu não gostei da sensação. Antes de abrir ele me disse algo sobre a esquina uma esquina, a esquina da Mariz e Barros, não identifiquei o nome da outra rua. Droga! Tem tantas Mariz e Barros pelo Brasil! Tem uma do lado da rua onde moro, mas seria muita coincidência ele morar tão perto de mim, e como ele saberia? Mas tínhamos que abrir aquele baú, e foi como eu temia, voltei para o túnel do inicio, mas só que já estava caindo, o que parecia ser o caminho inverso, eu estava vendo tudo muito claro, parecia que estava perdendo a consciência, e estava mesmo.

Quando voltei a mim já estava sentada a minha cama, assustada, olhei em volta a procura de algum rastro que me indicasse aonde eu estive, olhei no espelho a procura de algum sinal dos “anos que passei fora”, nada, e por ultimo procurei por algum rastro daquele que me acompanhou por esta aventura, como imaginei, não havia nada. Estava com muita fome, então comi algo, estava arrasada. Ainda era bem cedo, o dia estava nascendo ainda, foi então que durante um gole no meu Nescau me lembrei do que ele disse da esquina. Não quis saber, peguei o primeiro casaco e lá fui eu, procurar por tantas esquinas daquela rua, sem nem saber se era aquela a Mariz e Barros certa, andei por muitos e muitos blocos, já estava desistindo, abaixei a cabeça e estava me preparando para me virar e ir embora, estava começando a chover. Mas uma figura me chamou a atenção, tinha uma semelhança enorme com o João. Bem, eu acho que era mesmo ele, pois sorrimos um para o outro e corremos para o nosso encontro, que desta vez, foi marcado, mesmo que de forma tão engraçada.

Sou um cordeiro

Por Leonardo Bortolin Bruno

Acabei de descobrir que sou um cordeiro no meio de um rebanho bem grande.
Lá me encontro sem pensar em nada, apenas faço o que todos fazem e só fazemos porque alguém nos manda fazer. Percebi também que, sendo um cordeiro, conduzo minha vida de maneira tranqüila e decente. Ajo da melhor forma e de acordo com os costumes corriqueiros de quem é um cordeiro dentro de um rebanho.
Por que tentar sair daqui ou tentar não fazer o que me pedem? Se, no fim das contas, serei reprimido e, com certeza, voltarei ao rebanho do qual tentei sair. Até porque é assim que funciona; se não fosse assim, talvez nem estivéssemos aqui. Alguém sempre tem que mandar e outro obedecer. E sempre quem manda é o que tem mais poder. Pois é essa pessoa que faz tudo funcionar. E se não funcionar, tudo pode virar uma desordem. Apesar de que a desordem é uma coisa interessante, mas não vem ao caso nesse momento. Agora estou a falar de minha descoberta.
Bom, acordo e já vou comer, todos nós cordeiros temos uma ração pastosa e sem gosto. Sempre há um que come demais e acaba passando mal. Esse, coitado, é tachado como fora do padrão e levado para fora dali. No resto do dia ficamos no mesmo lugar, no pasto, cercado por cercas de arame e estacas de madeira. Certa hora do dia, alguém com mais poder que nós leva-nos para um passeio no campo. É nesse momento que nos sentimos melhores, pois conseguimos andar mais e com espaço para nos deliciar na grama. Mas é nessa hora também que vemos como somos cordeiros no meio de um rebanho. Bate a sensação de estarmos sendo vigiados e a sensação de ilusão daquele passeio.
Depois de vários dias, nós não conseguíamos mais pensar, era só comer e ficar ali parado. Contudo, houve um cordeiro entre nós que surtou:
- Ahhhh!!! Quem são vocês? Por que ainda estão aqui? Não quero mais ser um cordeiro dentro desse rebanho acomodado.
O silêncio se instaurou e todos olhavam fixos para esse cordeiro, que depois fora tachado de rebelde. Outro cordeiro tentou falar algo:
- Mas, mas, e… você é igual a gente, não pode…não pode mudar isso.
O cordeiro rebelde se pronunciou em tom pedagógico:
- Vocês não vêem essa situação de merda que estamos passando, todos amontoados, achando que o normal é ficar assim, sem conseguir andar e pensar. E ficamos recebendo ordens dessas pessoas que nem são melhores que a gente, a única coisa é esse conceito de poder que lhes foi atribuído. Que poder é esse? De mandar a gente fazer o que eles querem? Eu só espero que vocês não fiquem acomodados e amanhã quando formos dar nosso passeio pelo campo, fugimos correndo para qualquer direção, depois nos encontramos no lago sul para formarmos um grupo e irmos libertar outros cordeiros presos.
O silêncio foi novamente imediato e rompido pelo fervoroso ânimo de todos cordeiros. Depois, outros também vieram a falar, um atrás do outro, e todos numa energia forte e intensa.
No dia seguinte, acordamos, comemos e fizemos as mesmas coisas. Eu nem me lembrava do dia anterior e, pelo que percebi, ninguém se lembrava. Ao irmos para o pasto, começara uma música estranha e,com vozes sussurradas, dizendo “Viva a ordem”. No meio do pasto estava o cordeiro rebelde de ponta-cabeça, preso por uma corda, pingando muito sangue que saía de sua boca. Todos se assustaram e eu fiquei em choque com tanta violência. Será que aquilo ocorrera devido ao seu discurso do dia anterior? Certamente. Aquilo me arrepiou a espinha e me fez acreditar de vez que a melhor coisa na vida era continuar sendo um cordeiro no meio de um rebanho. Se tornar cético de tudo e apenas viver aqui, sem pensar nas coisas do Mundo.
Ser cordeiro não é tão ruim. Recebemos ordens, mas quem hoje não as recebe? Minha vida pode ser tranqüila aqui, e assim está sendo. Também pude perceber hoje que não só o cordeiro recebe e cumpre ordens vindas de alguém com mais poder, até o ser humano, ser mais evoluído que nós, passa por isso. Então, se é assim que funciona, por que estar aqui escrevendo, se no final sou apenas um cordeiro dentro de um grande rebanho, participando daquilo que chamarão fim do Mundo?


9 de jun. de 2010

Diante de mim, a procuradora

Por Fernanda Pôrto


Coagida e alerta. A mulher da ação cumprimentou-me polidamente. A procuradora olhou-me inquieta. Gaguejou. Argumentou que há muita mentira envolvida, que alguns a invejavam e estavam tentando prejudicá-la ferozmente. Engraçado. O comentário não mencionou a criança. Não ouvi nada no sentido de: “eu jamais faria isso, é a minha filha!”. A ausência da preocupação de quem conhece o amor e a capacidade de amar soou como um veredicto. Vera Lúcia só conhecia o sentimento de posse. A menina era mais um animal em meio ao zoológico daquele “lar”: teto e alimento já deveriam ser suficientes.

Para as crianças e para quem já foi uma delas, aquela mulher se configurou como a bruxa dos contos infantis. O extremo oposto da maternidade. O maior pesadelo de quem apenas engatinha no breu da hostilidade.Questionei os ferimentos, as ofensas, a noção de cuidado e a adoção. Quis saber se fosse o caso de um filho biológico a situação se repetiria. Ela só balançava a cabeça negativamente até soltar: “é tudo mentira, rapaz, você não conhece essa gente”. Queimou mais uma vez não ouvir lembranças da menina. Fui além e indaguei sobre o seu passado; e se tivesse sido ela a criança agredida? “Meu filho, não se trata disso”. Realmente. A procuradora acusada tinha razão. Tratamos aqui de crueldade. De doença social. De falência.

Fui até Bangu buscando neutralidade. Saí deprimido. Temi por todos os prisioneiros do ciclo da violência. Compreendi, finalmente, o que é a fome de consumir uma vida. Vera Lúcia se nutre de desespero, de desamparo, de ausência de esperança, de tortura. Ela precisa arruinar ao fim e ao cabo para se sentir gente. Ser o que é só faz sentido quando há cabeças servindo de tapeçaria.

Fracassei como repórter. Não pude tomar um punhado de perguntas e projetá-las à minha interlocutora. Finalizei antecipadamente, agradeci à carceragem e à detenta. Não deixei minhas humanidades de fora. Não quis culpar, mas também não houve como me abster. Estava ressentido e resignado em minha atitude. Usei o abandono como arma de defesa. E lembrei que ela usava como de ataque.

Pensei em como estar ali parecia uma cena de cinema. Percebi a nossa situação e a realização plástica de uma mídia escorregadia. Os interesses que rodeavam essa mulher talvez não fossem tão dignos. A profissão clamou mas eu também me levei até lá. Os limites humanos da convivência foram, em dado momento, extrapolados por Vera Lúcia e aquilo soava muito maior que uma matéria e do que um esforço de remarcar a vilania.

Maldade e loucura são sempre confundidas. É difícil mensurar a inabilidade de alguns para apreender os limites do outro. Os atos dela tocam na ferida aberta em muitos círculos: o abandono dos pais implica em uma responsabilidade do abandonado. O que levou essa mulher à justiça materializou a violência de entender a si como absolutamente suficiente. Os ataques à criança evidenciam a potência máxima do egoísmo, da incapacidade de se relacionar e da ausência de sentimentos moduladores.

Caráter, doença, moralidade, direito humanos, crime, agressão: terminologias vinculadas ao personagem que conseguiu ultrapassar via tortura o peso de ser um assassino. Fazer sofrer, minar o florescer mais puro de alguém que já veio ao mundo como algo profundamente indesejado, dar as costas, negar o reconhecimento mínimo do respeito. Vera Lúcia personificou e colocou em prática os elementos que definem o lavar as mãos de cada dia. E foi uma vilã completa e vencedora de sua empreitada. Polemizou _ ainda mais _ a adoção, atrasou famílias de se completarem, fortaleceu e semeou o sentimento de tantas crianças de não serem o bastante.

Ninguém entende, todos perguntam: por quê?

Cedo ou tarde, no verão

Por Júlia Câmara


O final do verão tem muito de melancólico. Acabo de escrever um perfeito lugar comum.
Todas as tardes comprovo que a luz diminui uns minutos no dia anterior. Estou perfeitamente reconciliada com a mudança de horário que, este ano, nos deu tardes longas até o cansaço sufocado. Compreendo os argumentos na contramão, mas não são os meus.
Não posso ir contra qualquer argumentação, estou um pouco cansada delas. Assim como me cansei da minha própria imaginação que corroeu cada músculo do meu coração. Até torná-lo uma terra infértil para qualquer sentimento que queira florescer. É inevitável não me questionar porque os sentimentos mais remotos conseguem penetrar meu ser de uma forma quase indolor e depois de um certo tempo se tornarem a pior tortura que alguém poderia sofrer.
Tudo é tão contraditório que me faz acreditar que qualquer explicação jamais bastará, em alguns segundos o ar que chega aos meus pulmões não é mais suficiente para manter constante o compasso da minha respiração. Então sou capaz de ver com nitidez que em alguns instantes tudo parece desmoronar, como os castelos de areia, que o mar levou rapidamente, sem o menor lamento. Castelos estes, que contemplei algumas vezes na praia, durante as tardes que me esforcei para aguentar, sozinha e esquecida.
Esse tempo que envolve o verão deveria ser um ciclo infinito. Ainda mais nessa cidade que não se cansa de modelar e esculpir quaisquer acontecimentos da minha vida. É um cenário minuciosamente desenhado. As cores, sintonias e luzes se cruzam tão perfeitamente como se me guiassem para sensações desconhecidas. Cada imagem que vejo se esboça diante de minhas pupilas de uma forma inigualavelmente extasiante.
As ruas dessa cidade têm o poder de me manter viva, ainda que todas as luzes se apaguem com a intenção de me fazer dormir. Elas se atravessam e percorrem meu corpo, suplicando para fazer parte de mim. Assim como todos os vasos sanguíneos que carregam sangue ao meu coração. Ainda posso senti-lo palpitar, um pouco mais lento e cansado. mas sei que ele segue ali, se esforçando por mim.
O que escrevo ultimamente não faz sentido algum. Ainda mais hoje, neste momento, diante dessa tela, que enxergo um pouco distorcida devido aos meus olhos mareados de lágrimas. Relembrar momentos às vezes pode machucar um pouco mais fundo do que o normal. Relevar certas coisas é tão fácil, mas esperar que o tempo feche as feridas custa um pouco mais. Até hoje, depois de passados alguns meses, isso ainda me toma certos momentos de paz interior.
Definitivamente acho que o verão que passou ainda tem o poder de me deixar completamente desnorteada. Perco minhas forças quando a nostalgia me domina. Me sinto refém de algo que nem ao menos posso caracterizar. Lembranças insanas de tempos que jamais poderei reviver de novo. Tempos que hoje tenho como um dos bens mais preciosos da minha vida
Tardes quentes em que decidi abandonar grande parte dos meus desejos temendo não ser capaz de seguir em frente. Dias um pouco mais longos em que os céus de diferentes colorações clamavam pela necessidade de um sorriso que não se formava em meu rosto. Noites quentes nas quais meu coração congelava devido à falta de reciprocidade de um amor. Momentos angustiantes que se desenrolaram de uma forma não muito convencional, e que transformaram-me em tudo o que sou hoje.
Me esforço constantemente na tentativa de não pensar mais, porque ainda que o tempo tenha amenizado os acontecimentos, todos os meus caminhos me fazem retornar aqueles dias, com a esperança de reviver algo parecido. Não posso negar que os acontecimentos do meu presente são coerentemente consequências diretas daquele passado que ainda me assombra.
Não vou negar que ainda há em mim vontade de reviver e de mudar coisas que aconteceram. Porém jamais com a intenção de mudar o que eu sou hoje. Certa angústia mesclada com inquietação ainda me mantém enjaulada, sozinha e presa dentro de minhas próprias loucuras. Sou refém de mim. Sempre fui, só não percebia, pois as diretrizes pareciam ser outras. Travo uma batalha árda dentro de mim todos os dias ao passo que tenho certeza que é um alívio aprender a esquecer aquelas sensações vivas e recorrentes.
O sol daqueles dias ainda permanece intacto e brilhante. Se esforçando e lutando para reacender a chama que iluminará para sempre meus dias. Me sinto um pássaro recém- nascido, que caiu distante do ninho e que precisa se salvar dos perigos, ao passo que espera crescer para viver sem medo. Sempre com a intenção de poder voar e enxergar tudo de outro plano.
É um pouco árduo o trabalho de buscar palavras para tentar construir frases sensatas sobre aqueles tempos. Tempos que se mesclam com quaisquer uma das minhas atitudes do presente, ou melhor, que se mesclam com o meu presente, literalmente. Reitero que nada faz sentido, assim como eu, assim como meus pensamentos sem lucidez e minhas atitudes irracionais. Estou soando tão complexa que ninguém ousará, ou fará alguma questão de tentar entender.
A brecha na cortina me permite contemplar a lua cheia. É exatamente a mesma lua que iluminou aquela noite quando tudo começou. A noite que foi a razão principal de grande parte dos acontecimentos do verão. A noite em que o casulo se desfez, consentindo assim em me deixar voar. A noite que me permitiu viver novos momentos e conhecer novas sensações. Depois dali me tornei possível conhecer meu verdadeiro eu interior, que existia, estagnado e escondido.
Nada nunca poderá se comparar a todos os momentos daquele tempo. Lá descobri que tudo pode ter começo, meio e simplesmente nunca ter fim. Apenas escrevo hoje com o intuito inconformado de saber que me deixaram ir sem nenhuma explicação. Me abandonaram mesmo sabendo que eu era incomparavelmente única. Abro meus olhos e enxergo o mundo sabendo que os desacertos jamais, em tempo algum, foram cometidos por mim.
Desilusões são coisas tão banais. Apenas não sabemos disso. Finalmente hoje tenho a plena certeza que todas as coisas sucedem por um motivo certo. Por mais que sejam dolorosos e nos deixem inconformados. A vida é inevitavelmente coerente e se as coisas ainda não modificaram, há que se esperar, tudo o que não vem a nosso favor pode nos fortalecer. E ainda acordo todos os dias, mais forte do que era, com uma única certeza. Jamais deixarei de acreditar que existe alguém, em alguma parte do mundo, esperando por mim. Cedo ou tarde, acontecerá.
Enquanto isso sigo aqui, me apaixonando, todos os dias. As paisagens conseguem ser belas em qualquer estação. Essa cidade alcança o feito de ser indubitavelmente única e me arrancar suspiros quase impossíveis. Por isso seguirei sempre buscando esconder minhas mágoas e desejos súbitos embaixo das pedras e do sol poente do Arpoador.

A história de Sofia

Por Júlia Robadey


Ela era nova, somente cinco anos. Tudo era bom, não havia problema ou confusão. Seus pais se amavam e isto era o suficiente para ela. Sofia era linda, loira, cabelos cacheados, olhos verdes e, além de tudo, extremamente carismática. Seus pais eram muito orgulhosos de sua única filha.
Porém, contos de fadas só existem no papel, sendo a vida, muitas vezes, extremamente cruel. Sofia só passaria cinco anos com seu muito amado pai. Ela nunca se esqueceria dos banhos de chuva que tomaram juntos ou da sua primeira festa de aniversário, na qual ele encarnou o Elvis.
Tinha consciência de que sua vida não pararia naquele momento. Sofia sempre teria cinco anos em suas lembranças, do jeito que ela sonhava ter durante a vida inteira. Aquele homem, aos seus olhos, lindo, perfeito e com um toque de maluquice saudável, que ela herdou por completo; era o que teria até o fim.
Com o passar dos anos, suas lembranças ficaram turvas. Ela precisava de fotos para lembrar do rosto dele. Mesmo sonhando quase todos os dias com um último momento juntos, ela já não se lembrava mais de sua voz ou de seus trejeitos. A pequena menina sentia sempre sua presença como um anjo da guarda. Mas, seu maior desejo era a volta daqueles míseros cinco anos.
Sofia era feliz, tinha consciência disto: uma mãe que a amava e era tudo em sua vida, uma família gigante e acolhedora, amigos fieis e um padrasto maravilhoso. Porém, sempre faltava algo. Em seus aniversários, natais e réveillons. Ela sempre esperava que ele pudesse estar lá, para um último abraço inexistente.
Cinco anos. Era só isso que ela tinha certeza que levaria para o resto de sua vida. Cinco anos onde tudo era completo e perfeito, onde sua existência fazia completo sentido. Somente cinco anos.
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Encontro Marcado

Não havia mais em Sophia a pureza de antes. O que era uma doce lembrança virou obsessão. Ela não conseguia se livrar do passado, do tempo em que esteve junto ao seu pai. A necessidade de reviver aqueles momentos era uma questão de sobrevivência. Sua vida baseava-se nisto. Nada mais, nada menos.
Sophia perdera os traços de criança. Agora era uma mulher de 21 anos; alta, todos a chamavam de Pin-Up. Seus cabelos eram castanhos claros, ondulados; e seus olhos, de um verde intimidador. Não existia um homem que não fosse encantado por ela. Além disso, transbordava inteligência. Cursava Psicologia na faculdade. Era a melhor da turma e o orgulho de sua mãe já debilitada, que vivia presa a uma cama de hospital.
Aquela doce menina do passado tinha uma vida aparentemente normal, morando na Zona Sul do Rio de Janeiro. Não era rica, mas conseguia sustentar seus luxos. O único problema era sua mania, ou hobby, como ela chamava. Todo dia, de manhã e ou de tarde, frequentava o parquinho perto de onde morava. Sophia dizia para seus amigos que gostava de observar, de maneira antropológica, aquele universo. Porém, não era bem assim.
Sophia gostava de observar especificamente os pais das crianças de cinco anos. Os beijos e carinhos, as brincadeiras que faziam, o empurrar do balanço, a felicidade estampada em cada rosto. Aquela atmosfera, ao mesmo tempo que era inebriante, também a enjoava. Contudo, ela não podia demonstrar. Tudo precisava ser bem feito. Sorria sempre, para todos. Era simpática com babás e mães. Já com os pais, ia além. Ela os seduzia. E, normalmente, bem sucedida.
Toda semana com um novo amante. As amigas a invejavam, os amigos não entendiam porque ela escolhia aqueles homens, geralmente casados. Os colegas brincavam dizendo que isso era seu Complexo de Electra falando mais alto. E não deixava de ser. Tinha plena consciência. Afinal, como estudante da área, entendia sobre o assunto. Mas, para os amigos, ela simplesmente sorria. Os motivos para as suas relações eram mais obscuros do que qualquer um poderia pensar.
O último deles foi o mais interessante. James, um americano de férias no Rio. Ele viva em Manhattan, brincava dizendo que seu prédio era perto de onde morava o Woody Allen. Ela não ligava para isso, só queria que tudo fosse do jeito que planejara. Sua filha, Anne, era adorável. Branca, cabelos negros e olhos azuis como dois topázios. Sua mãe, Samantha, viva para ela. Por isso, foi fácil fisgá-lo. Tudo ocorreu em uma semana, como de costume. Eles se conheceram no parquinho, trocaram telefone e, no dia seguinte, já estavam em um luxuoso motel caro bancado por ele. Parece que James não fazia aquilo há anos.
Para James, Sophia chamava-se Clara, ou Claire, como ele dizia. James a olhava de uma maneira diferente, carinhosa. Parecia que, além de um caso, ele realmente tinha sentimentos por Sophia. Fazia de tudo para agradá-la, para vê-la sorrir. Sentimento novo para ela. Nenhum dos outros casos anteriores foram assim!. Era só prazer. Repulsa era a palavra que melhor descrevia o que ela sentia. Não havia intenção de envolvimento profundo. Sophia não queria se envolver, não queria sentir nada. Absolutamente nada.
No domingo, ao chegarem no motel de costume, James estava apreensivo. Sophia havia dito que haveria uma surpresa naquele dia. Quem não adora surpresas? Ela estava mais linda do que de costume. Realmente parecia uma pin-up. Vestia o sobretudo que ele dera de presente na noite anterior. Lindo, preto com detalhes em vermelho, quatro botões. Ela abriu o mais belo sorriso. Ele estava extasiado. Sophia carregava um pacote qualquer, mas ele não estava preocupado com isso. O mais importante era a lingerie de renda que estava por baixo daquilo tudo. Preta e roxa, combinando com os sapatos. Estendeu o pacote, dizendo ser um presente para ele. Era uma caixa de bombons. Ele comeu. O problema é que alguns homens não aguentam cianeto.
Era assim que terminavam suas relações. Com a morte dos amantes seduzidos. Para Sophia, isso era uma vingança pela morte do pai, assassinado. A visão dela era deturpada, o choque fora muito grande. Mas, sempre pareceu sã desde então. Para sua mãe, era a melhor pessoa do mundo. Para o seu padrasto, um grande orgulho. Mal sabiam que ela não ligava, sua vida girava em torno desse jogo. Observar, seduzir, matar. E ela se divertia, já não cometia erros. Sophia não se preocupava com as filhas daqueles homens. Afinal, nunca se preocuparam com ela!
Na faculdade tudo ia bem, como sempre. A única novidade era sua viagem para a Espanha, onde faria um período na Universidade de Barcelona. Todos estavam muito animados com essa oportunidade. Uma surpresa para própria Sophia. Uma professora a inscrevera, pois sabia que seria bom para o crescimento daquela excepcional pupila. Sophia já estava preparada. Sabia que lá seria difícil continuar com o seu passa tempo favorito, mas ela não se importava. Estava feliz por aquilo tudo.
Por algum tempo, ela não se importou de ficar sem o seu hobby. Ela aproveitou Barcelona muito bem. Fez novos amigos, ficou com alguns homens normais, teve ideias para sua monografia. Foi tudo muito bom. Porém, depois de um mês, ela sentia falta daquele jogo. Aquilo era sua droga, e ela estava em plena crise de abstinência... Todo dia planejava um fim diferente. Chegou até a comprar um caderno para fazer essas anotações. Ria. Achava muito engraçado aquilo tudo. Ela falava para si mesma que era uma forma de trabalhar o raciocínio. Principalmente ali, onde o sistema criminal era superior ao do Brasil. Precisa ter cuidado redobrado com tudo. Qualquer deslize seria o seu fim.
Numa tarde, ela estava num parque. Ali era tão bonito, as cores, os cheiros. Tudo novo, diferente. A atmosfera era agradável, interessante. Ela mantinha um sorriso tímido no canto da boca. Realmente gostava dali, sentia que tudo estava completo. Como isso poderia acontecer? Nada tinha mudado. Seu pai estava morto, sua mãe no Rio. Mas, para ela estava, por alguma razão desconhecida. E Sophia gostava daquela sensação.
Uma menina, beirando os cinco anos, veio em sua direção. Sophia prendeu a respiração, seus olhos ficaram atônitos. Ela não acreditava no que via. Era ela quando pequena! Não era possível, tão parecida! Depois de um tempo, Sophia começou a ver algumas diferenças. Os olhos daquela criança eram de um mel estonteante; sua pele, um pouco mais morena; e os cachos, castanhos. Contudo, os traços eram os mesmos. Tinha certeza de quem puxara aquilo. Seu pai. Ela olhou em volta. O pânico tomou conta de todo seu corpo. Aquele era o encontro que ela sempre desejou. Ela tremia, suas mãos gelaram. Ele não podia estar ali. Ele não podia estar vivo.
Sophia saiu correndo em direção à sua casa. Ao chegar lá, trancou-se no quarto. Chorava compulsivamente sentada de frente para sua escrivaninha. A foto de seu pai estava ali, olhando para ela. Rafael não era bonito. Alto, cabelos castanhos, olhos esverdeados e uma pele pálida. Mas, ele era charmoso, com um olhar penetrante e um sorriso maravilhoso. Ele estaria vivo, em Barcelona, com uma filha de cinco anos? Ela começou a rir como uma louca. Aquilo não poderia ser verdade; seria um sonho ou um pesadelo? Seu pai, o motivo de tantas mortes estava vivo. E agora, o que ela ia fazer?
O parque se tornou o segundo lugar que ela mais frequentava. Todos os dias, no mesmo horário que ocorrera o tal encontro. Ela observava, procurava aquelas duas figuras. Pela primeira vez, ela não sabia o que fazer. Como falar com ele? Seria tudo por instinto. E ela os avistou, felizes, brincando. Sophia não sentia nojo naquele momento, era raiva. O ódio pela dor que Rafael causara havia tomado o seu corpo. Ela precisava respirar fundo. Não poderia cometer nenhuma besteira.
Sophia foi na direção dos dois. Ela estava com o sorriso de lado, um olhar felino. Estava lindamente perigosa. Rafael olhou para aquela figura diferente. Ele sorriu. Era um duelo para ver quem conquistava o outro primeiro. Não tinha um vencedor, o desejo era mútuo. Como normalmente ocorria, a primeira parte daquele jogo não foi difícil de ser concluída. Ela o seduzira. E ele nem sabia de quem se tratava. Para Rafael, Sophia era Elisa.
Aquele romance doentio durou mais de uma semana. Eles se encontravam na casa de Sophia, num motel barato da região ou mesmo na casa de Rafael. A mulher dele, Anita, viajava para promover seu novo livro. Ela ficaria dois meses longe de casa. Eles aproveitaram um mês daquilo. Não havia amor, não havia carinho. Nenhum dos dois almejava aquilo. Eles conversavam muito sobre várias coisas. Na verdade, Rafael falava sobre sua vida e Sophia o escutava. Ela queria saber como tinha sido. Claro que ele não contava detalhes. Ele dizia que a vida dele havia recomeçado ao chegar a Espanha. E era isso que mais importava para ele.
Era uma tarde chuvosa e fria. Os dois estavam na casa dele. Lareira acesa, vinho, um cheiro de alguma comida típica da região. O cenário estava perfeito. A filha dele, Paloma, fora para casa dos avós. Então, ninguém iria atrapalhar nada. E era isso que Sophia desejava. Ela estava no banheiro, retocando o batom. Olhava fixamente para sua imagem refletida no espelho. Respirava fundo. Em seu bolso havia algo que ela não estava acostumada. Ela tremia. Não de medo, mas de excitação. Deu um sorriso feroz para ela mesma e saiu. Na sala, Rafael ouvia música. A última coisa que ele ouviu, antes do golpe na cabeça.
Ao acordar, ele estava amarrado. Sophia o observava. Ele se debatia, esperneava. Ela começou a falar para ficar quieto. Seria melhor que não fizesse escândalo. Ele parou. Sophia disse que tinha algo para contar, mas precisava que ficasse quieto e prestasse atenção. E ela contou tudo. Ela era sua filha, que ele havia abandonado há 15 anos. Ele fizera com que ela se tornasse um ser obsessivo, por aquilo e por ele. Sophia matava homens que tinham filhas de cinco anos. Ele ficou horrorizado. Ela riu com a cara que ele fez e disse que agora precisava acabar com aquilo. Dar um fim ao ciclo. Ele se debatia. Um tiro na perna. Um grito abafado pela fita crepe na boca. Ele a olhava suplicando por sua vida; ela o observava como uma louca.
No dia seguinte, os avós chegaram trazendo a pequena Paloma. Viram aquela cena de terror. Rafael, amarrado e coberto de tiros. Sophia, em um canto, morta com uma bala na cabeça. Os gritos tomaram conta daquela casa. Paloma olhava perplexa para tudo aquilo. Ela sabia que não teria mais seu pai. Mas também sabia que teria a sua vingança.

A vida bate


Por Thiago Lopes de Freitas


Ao ler o poema "A vida bate", de Ferreira Gullar, sabendo que teria a incumbência de desenvolver algumas linhas que tratassem das minhas impressões e sentimentos, prontamente comecei a buscar o que havia produzido sentido em mim. Observei as palavras, a maneira que as idéias foram construídas e ensaiei escrever algumas coisas. Contudo, nada me satisfazia. Pensava em palavras soltas, coisinhas bobas. Definitivamente, nada parecia ter feito muito sentido. Talvez um pouco de preconceito, pois tive a oportunidade de conhecer o tal escritor pessoalmente e na ocasião o achei um grosseiro. De qualquer maneira, estava demasiadamente irritado já que deveria apresentar alguma resolução para a proposta que me fora feita.
Desisti de escrever. Muito barulho. Não conseguia me aprofundar no que esse “tal Gullar” queria dizer. A televisão dava destaque para a chuva que provocou desastres no Estado do Rio de Janeiro. A contagem dos mortos passava dos 130 no município de Niterói. Confesso que nesse momento, a notícia me dizia mais do que o poema do decrépito Gullar. A televisão, o barulho das pessoas em casa e o ruído de um culto pentecostal vindo da rua tiravam a minha atenção. Batia o nervoso, pois o domingo seria o último dia hábil que teria para realizar a atividade. A segunda e a terça seriam cheias. Como é ruim ter que associar tempo, responsabilidade e sentimento. Ler e refletir sobre o que se lê não necessariamente é um processo sucessivo, principalmente tratando-se de um poema. Às vezes precisamos parar, fazer outras coisas, conversar com alguém ou simplesmente dormir para “compreendermos” tamanha subjetividade Pensei como deve ser ruim a vida de um crítico profissional de arte, cinema, literatura. Tudo bem que a minha função não era fazer uma crítica, mas mesmo assim. Ninguém aceitaria que o poema não provocou nada em mim. Tampouco eu aceitaria. Acredito que a indiferença é um dos piores males da humanidade, por isso necessitava produzir alguma coisa escrita. Mas depois da televisão, corri para o videogame. Na verdade, um emulador para PC, mas o meu Super Mario World era o mesmo da infância. Joguei bastante e fui para a cama. Aproveitei o “pré-sono” para namorar um pouco. Faz parte.
Mas o tal poema do Gullar não saía da minha cabeça. Revirei meu corpo para tudo que era lado da cama. Estava incomodado e fui ler o poema novamente. Aproveitei que já passava das 2 da manhã e o silêncio reinava. Ao ler, espantei-me. Palavras como homem, vida, fome, buscam, amor, cidade, refúgio, se misturavam num belíssimo arranjo poético. Pareciam carregar o valor espiritual do poema. Comecei a pensar no homem urbano e a busca incessante por vida. Como se tivesse fome de viver. A cidade, embora seja o refúgio social, econômico e cultural dessa criatura, é uma organização esquizofrênica. Pessoas indo de lado a outro, sem ao menos falar “Bom dia”. Ricos, pobres, pessoas saudáveis, outras doentes, gente que conseguiu um bom emprego e gente que perdeu tudo. Todos caminham, se cruzam nos sinais, pegam ônibus, se encontram em filas de banco, em terminais, na praia, shoppings, teatros, concertos, estradas, avenidas, praças, museus, universidades, parques, boates, botecos, galerias aaarrrggghhh...! O Gullar era como eu. Um sujeito citadino, que observa esse fluxo de gente que vai e volta, anda, para e retorna. Gente que busca viver das mais diferentes maneiras. Que busca meios de realizar seus projetos e ter uma vida realmente ativa, tentando se afastar da solidão e produzir sentido para si.