4 de jun. de 2007

Fotografia

Por Clarissa Nanchery

“Custa muito olhar para esta fotografia da minha filha mulher.Tenho álbum e álbuns dela em bebê e menina; na adolescência passeia a fotografá-la menos e, sobretudo, a esquecer-me de organizar as fotografias.”

Não. Não era propriamente esquecimento, posso ver nitidamente que se trata de refutar um gesto que há tanto significava o “fazer” devoto de um pai que admirava e amava com um sentimento racional.

Essa mesma racionalidade que hoje me traz angústia e solidão. Sim, estou só, de fato. Mas não é da falta de companhia que falo. Refiro-me, sobretudo, à situação de não ter a quem dirigir as mais doces afeições e saudades de um homem de cinqüenta anos refugiado na eterna Europa. Há quem ainda me questione sobre minha bela filha.... Não nem a ela todo o carinho que guardo pode ser entregue.
Como se parece coma mãe! O sorriso é o mesmo. A postura impositiva.... Talvez haja nela o mesmo tom arrogante de quem olha por cima; como Dulce o fez por tantos anos. Os cabelos longos e negros... A maneira explosiva e expansiva de falar...
Dulce deveria imaginar a dor que me causaria ao mandar-me esta fotografia. Decerto pensou, mas me enviou ainda assim. Só ela teria um gesto tão egoísta. Como não se ateve ao motivo de meu afastamento? Como pode quebrar minha redoma e enfiar-me na guerra sem ao menos consultar-me se era esse o meu desejo? Coisas de Dulce. Enfrenta as mais rígidas barreiras para fazer valer a sua vontade. Sempre foi assim: o que ela queria era o que deveria acontecer; sem pensar na repercussão que ganham as palavras e gestos, e munida da mesma retórica convincente de quem está absolutamente certa.
Até nisso Ana faz lembrar cada vez mais minha ex-mulher. No último encontro que tivemos, brigou, encarou-me e quase me convenceu de que a mãe não estava errada, nunca errara e que tudo se justificativa se eu notasse o quanto havia sido culpado. Culpado de quê? Não querer ver o que se atrevia a mostrar-se? Talvez seja isso! Mas repito tal frase sem nenhuma convicção e olho esse álbum repleto de fotos antigas sem conseguir perceber a grande culpa que teimam, mãe e filha, em me atribuir.
Éramos felizes desde sempre, desde o nascimento de Ana. E não há o que duvidar: vejo, em cada um desses momentos fotografados, a minha fisionomia contente e realizada, depois de tanto tentarmos a chegada de um filho que pudesse chamar de “meu”. Seis anos precisamente. De fato não foram as épocas mais felizes de nossas vidas... Recordo-me de acusações e injúrias que lançávamos um sobre o outro. Falta de paciência, diria até falta de respeito, mas amor nunca faltou. Pelo menos, não a mim. Dulce vivia pelos cantos sem brilho, sem o doce de seu nome. Animava-se apenas quando estava longe de casa. Mas sempre acreditei que tudo isso representava uma atitude normal de uma mulher ansiosa pela chegada do filho e que, perto do marido, não conseguia deixar apenas latente a situação que vivenciava. Era isso. Era apenas isso o que me passava pela cabeça, não podia ser outra coisa.
A fotografia de Ana na mão não me traz, exatamente, sentimentos perversos, nem tampouco os mais bonitos. De belas ficam apenas as lembranças de ter um lindo bebê nos braços, de sua infância festiva e agitada. Prefiro esquecer a adolescência complicada da personalidade que estava se formando cada vez mais diferente da minha. Da mesma maneira que tentarei esquecer a fotografia dessa moça estranha na mais remota gavetinha de meu armário.
Minha racionalidade não me permite amar e ter saudades de uma filha que não é minha, de uma moça que não fui eu que gerei.


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