14 de jun. de 2007

5 de jun. de 2007

Um cheiro de dezembro no ar

Por Mariana Vedder

Em novembro é sempre assim. É quase o calor de dezembro. Mas ainda no clima de dias úteis. Dezembro todo já é natal. Em novembro ainda não temos muitos enfeites natalinos. Nada de laços, bolas coloridas, neve falsa. Não é diferente na Avenida Paulista.
Ao meio-dia – rua lotada, claro; horário de almoço da maioria dos executivos da principal artéria do organismo chamado São Paulo – ele passa. Andando devagar. E aquela gente toda correndo. Muito estranho. Fiquei olhando de dentro da cafeteria mesmo. Um homem comum, mas se destacava, tinha algo intrigante nele. Por que andava por ali como se estivesse passeando pelo Parque do Ibirapuera? O que mais estranhava era o modo como estava vestido. Um sobretudo marrom! No calor de quase dezembro...
De repente, o homem misterioso parou em frente à cafeteria onde eu estava. Minha torta de frango já até esfriara. Tamanha era a minha curiosidade em saber onde ele ia. Seria uma pessoa comum? Ou meu olfato de detetive não me enganara? Ser detetive tem dessas coisas. A gente não consegue mais saber se é paranóia ou se é faro profissional. Dia desses eu me peguei abrindo a maleta de uma senhora. Coitada! Quase morreu de susto. Mas não sei por que, havia algo suspeito no jeito dela.
O garçom trouxe o capuccino. Nem repararia se ele não me cutucasse. E o homem estava entrando no café. Eu sabia! Ele tinha algo nas mãos. Um cigarro, uma carteira... Ah, nada de mais. Devo estar ficando mesmo doido. Minha esposa adora repetir isso. Nunca vi. Droga! O misterioso sentou-se distante. Precisarei afastar minha cadeira para conseguir vê-lo. Ah, céus! Eu nunca me engano mesmo. Um papelzinho. Ele entregou um papelzinho ao garçom.

Por Felipe Han da Costa


Entregou, olhou à esquerda, à direita – como se procurasse algo ou alguém – e saiu apressado. Sim, a intrigante calma fora trocada por uma velocidade avassaladora. O estopim da celeridade presenciada, talvez o papel, olhar do garçom ou ainda um eventual aperto de mãos secreto, era motivo suficiente para eu largar a nota gasta de cinco reais na mesa e iniciar nova investigação.
O meliante trocava passos rapidamente, por sorte eu estava no auge da forma física. Conseguia desviar de todos aqueles pedestres com facilidade. Não fosse o veículo KTF-3576, minha busca terminaria perfeita. Após o meu quase acidente e quase visita ao hospital, o suspeito se distanciava. Mas a sorte era minha aliada, e poderosa aliada ela é.
Adentro o estabelecimento, segundos após o suspeito, cuja lábia confrontara a lábia do engraxate, na porta do lugar. Depois de longe embate, o homem do sobretudo mostrava sinais de cansaço. Não sei ao certo se pela caminhada ou a língua afiada do engraxate. Mas devido o tempo perdido na conversa, pude ver onde entrava. E claro, fui atrás.
O lugar – semelhante ao anterior – freqüentado por famílias de classe média, aparentemente não proporcionava interesse algum a esse tipo de homem. Entretanto, percebi novamente: entrega do papel, olhares desconfiados, saída rápida. Dou um passo para o lado, ficando estrategicamente na porta. Nervoso, ele olha meus olhos, olho os dele. Esbarra em mim e me entrega um papel. Do mesmo padrão dos anteriores. Dizia assim: ‘’recompensa para quem achar meu cão’’. Posteriormente a descrição do animal. E: “Obs: por favor, coloque este bilhete onde todos possam ver’’. Então deixo o restaurante. Novamente estou entre os milhares de desconhecidos da Av. Paulista. Tenho certeza: O sumiço de alguém nesta multidão, mesmo os que têm rumos cotidianos convergentes, não será merecedor de um mero bilhete. Ninguém sentirá falta.

4 de jun. de 2007

O Corte

Por Viviane Roux

Mais uma manhã cinza em Londres, carros jogando uma fumaça espessa no ar pesado da capital, crianças que mal conseguiam andar tal o peso de seus casacos felpudos. Aquelas bolinhas loiras impecavelmente arrumadas, mães de calças de ginástica e blusas quentes, bicicletas indo e vindo a todo tempo. Cidade. Grande. Metrópole.
Elias carregava um café fumegante em uma mão e pela outra puxava a preguiçosa Olívia. Homem alto, imponente, usava um de seus melhores ternos e cachecol vermelho. O rosto liso, bem barbeado e olhos sérios. Há dias que não os pregava.
Tão logo cumpriu a rotina de deixar a pequena na creche às 7 em ponto , se juntou a uma multidão de homens, mulheres e casacos que entravam no metrô. Sua cabeça fervilhava.
Depois de se apertar com dez funcionários no estreito elevador do prédio altíssimo de granito em que trabalhava, chegou à sua sala ignorando a presença de sua secretária Sylvia e seu sorriso branco. O “bom dia” da moça ficou sem resposta, enquanto o homem se afundava na cadeira alta, se escondendo atrás da mesa. Era hoje.
Há muito vinha maquinando uma certa idéia, para ser mais exato, desde o dia em que ouvira sem querer o Presidente do Escritório de Advocacia Sherman comentar que não haveria substituto melhor para o cargo de promotor chefe (ocupação de Mark Mc’Dowell, seu superior direto) do que ele.
Não era novidade que ele era mais competente que Mark, mais inteligente e graduado. Mark caíra ali por sorte e gastava o dinheiro que ganhava com trapaças e jogo sujo, em bebidas, charutos caros e prostíbulos do subúrbio da cidade. Era sozinho, costumavam brincar na repartição que nem cachorro suportava viver com o homem.
Elias sentado em sua mesa, repassou pela vigésima vez como procederia naquela noite. Deixaria a filha dormindo sozinha em casa por algumas horas (três no máximo), era o dia ideal, às quartas a esposa jantava com as amigas. Pegaria o metrô (o carro poderia chamar a atenção dos vizinhos) e certamente chegaria ao apartamento velho de Mark, antes do intervalo do jogo que Mark assistia comendo a mesma pizza de presunto e cerveja quente.


Por Flavia Risi

Tudo fervilhava ao mesmo tempo. Finalmente a arma que herdara de seu pai serviria de algo.
Eram quase cinco quando ele chegou a escola de Olívia. Estava disposto a botar em pratica toda aquela loucura.
Como planejara, aproveitou todos os minutos antes de ela adormecer.
Sem pensar, enterrou a arma na parte de trás da calça, de modo que pôde sentir gelado, o cano há muito adormecido.
Com apenas uma gota de coragem, saiu. O velho Mark o aguardava, e aquilo tinha de ser feito. Era melhor para todos que acabasse logo.
Já passava de 21h30 quando sorrindo entrou no prédio. O tom familiar fez com que não precisasse de identificações. O elevador estava no sétimo andar, o que o deixava tempo demais no hall. Logo logrou o único assunto que o livraria de todas as perguntas: E o timão, como anda?”... Tudo estava resolvido. Agora restavam apenas os vinte segundos que o conduziriam ao nono andar.
Um minuto de campainha e ninguém atendeu. Sabia que estava em casa. Havia o convidado para assistir ao jogo com ele. Por instinto, meio que imitando o cinema americano, Elias tentou a maçaneta. Como nestes filmes, a porta estava aberta. Antes de assim a ter por completo, retirou abruptamente aquele estranho que seu corpo aquecera.
Com a arma em punho, molhada com aquela mesma coragem que lhe escapava das mãos, enfrentou seu suplicio. Sem delongas, atiraria, sorriria e voltaria para casa.
Algo deu errado. O destino lhe sorrira pela primeira vez. Mark estava no chão, nu, cercado por sangue e um lençol amarrotado. Seus olhos miravam, imóveis, algum ponto no teto. Elias correu para certificar-se de que estava morto. Estes poucos segundos foram suficientes para a porta do elevador denunciar uma desagradável surpresa: agora dois policiais erguiam imediatamente a arma em sua direção. Sujo de sangue e empunhando uma arma, o destino lhe deu a ultima baforada irônica.
Olívia. Isabela. A empresa. Outro turbilhão fervilhava em sua mente. O que eles pensariam daquilo tudo... Restavam três segundo para decidir viver ou morrer.
Um estampido surdo.
Um baque no chão.
A porta do banheiro se abre.
Elias ainda pôde ver Isabela sair de roupão. Seu rosto molhado. As mãos, tremulas, deixaram a arma cair. Seu corpo desaba.
Tudo o que restou foram pequenos segundos de olhos vidrados.
Logo tudo acabou.

Um crepe adocicado

Por Mariana Vedder

"Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1968, Jean Paul Sartre discursara, no auge do fervor, a favor de uma revolução e de uma existência mais humana. Um repentino transe de emoção com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula da tarde para me conhecer melhor."

Sorri como há muito não sorria. E ela me conheceu tão bem, que a tarde terminou com um beijo leve. Com gosto de chocolate. Chocolate com avelã e um brilho no olhar.
Estremeci quando toquei suas mãos na despedida. Uma mistura de mistério e contentamento. As famosas borboletas povoaram meu estômago. Eram muitas. Trocamos e-mail e telefone.
Voltei para casa de ônibus. Eu sabia que demoraria mais. Não importava. Retornei minha leitura. Viva Sartre! As sardas do rosto dela não saíam da minha cabeça. Algo como fogo. Que hipnotiza e deixa marcas. E naquela mesma noite decidi ficar em Paris. Mesmo sem saber como seria o futuro.
Chegando em casa, liguei a secretária eletrônica. Apenas uma frase dela: ‘’nos vemos amanhã no mesmo lugar’’. Gostei do jeito como ela me tinha nas mãos a sensatez e segurança. Parecia mesmo saber o que fazia. Parecia ter a solução para o meu caos.
No dia seguinte, cheguei antes na praça. Sentei no mesmo canteiro. E ali fiquei a esperar. Um tempo dolorido arranhava minha garganta enquanto eu esperava. Uma espécie de intuição. Será que confundi o horário? Será que ela já havia passado? Até hoje não sei. E estou aqui na mesma espera. A mesma de 2 anos atrás. Como se o dia seguinte fosse sempre hoje. Os e-mails sem resposta e o telefone que só chama são como seqüelas do meu cotidiano dolorido. Estou sempre aqui à sua espera. Com o mesmo livro de Sartre nas mãos e o mesmo sorriso no canto dos lábios. Agora já contaminado pela calma que só o desespero é capaz de provocar. Estou sempre aqui; com o mesmo lenço que secou seus olhos. E o mesmo transe que nos tornou um só. Pelo menos na leveza daquele beijo adocicado.

Crepe de Avelã

Por Flavia Risi

“Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1986, numa daquelas esquinas proféticas, o filósofo Jean-Paul Sartre discursara, no auge do fervor, a favor da revolução e de uma existência mais humana. Um repentino transe de emoção com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula de tarde para me conhecer melhor”.


Eu disse que não. O que fez ela pensar aquilo? Talvez o fato de ter aceitado comer o crepe. Comecei a me arrepender disso tudo... Sem gaguejar, discursei em falso sobre um artigo, um congresso, trabalhos... Percebi sua íris desvendar minhas mentiras. Já não sabia mais do que me arrepender. A fim de não piorar as coisas, pedi a conta, agradeci-lhe o prazer da companhia e o maravilhoso crepe.
Ela não me sabia virginiano (puro sangue).
Estar fora daquilo era me sentir livre da atmosfera asfixiante. Era respirar seguro.
Certifiquei-me de tê-la perdido de vista antes de mais nada.

Paris. Duas horas após o crepe de avelã.

Respirava tranqüilamente em uma livraria, ainda que o cheiro dos livros me causasse alergia. Folheava os livros, mesmo sentido aquele nervoso nos dedos ressecados no papel áspero, de boa qualidade. E por fim, devorava-os, tentando esquecer minha recusa ao convite.
(certos virginianos acreditam totalmente em acasos)
A porta da livraria rapidamente denunciou um intruso. Reconheci aqueles grossos lábios, proporcionais àqueles olhos negros. Uma súbita falta de ar e uma longa taquicardia.

Paris. Trinta minutos depois de a porta abrir.

Ainda estávamos sentados ali. Ainda por cima, fingindo que acreditara em mim, pedia explicações para minhas desculpas.
Começamos a ouvir gotas lá fora. Era tudo que precisava. Agora não poderia fugir. Seus olhos pareciam mais sedutores e, provocadora, passava conversa molhando os lábios. Será que ela não sabe que isso acaba com virginianos?
Tentava olhar mais os livros do que ela. Começava a respirar de novo. A chuva parou.
Subitamente ela pede a conta. Desta vez foi ela.
Subitamente, sem respirar, pedi que aqueles olhos conhecessem meu quarto de hotel.
Ela disse não. Sorri achando que era brincadeira. (virginianos são orgulhosos).
Sorrindo a vi despedir-se e com o sabor de crepe ir embora.


Paris. Quatro horas depois do toco.

O bar do hotel se faz de lar. Uns drinks. Um jantar. Logo a noite terminaria!!!
“Para você ver... Me parece que nossos destinos não aceitam ”não” como resposta. Um Martini, por favor....”
Mais uma vez aturdido, mutilado, sufocado. Com meio sorriso, pedi o mesmo, com azeitona. Achei parecer mais forte que a cereja.
Pela primeira vez estávamos em silencio. Meus pulmões ainda não estavam confortáveis, por isso acendi um cigarro. O tic-tac foi quebrado quando ela me pediu um. Titubeei. Poderia me vingar da sua vingança. (realmente estava bélico!). Disse-lhe que aquele era o último e, temeroso, ofereci que dividíssemos. Era, dura, forte, deu um trago na minha vez, senti o cheiro da cereja em cima do filtro colorido pelo batom.
Agora, éramos mais íntimos. Poderia dizer que minha boca havia tocado a dela.


Paris. Uma hora depois do cigarro divido.

Estávamos no elevador. Deadline. Matar ou morrer. Normalmente, não importaria. Me conforta pensar que certos virginianos são céticos, e que desta forma, “acasos” não passam de acasos. O destino, como tudo nestas vidas, está sob total controle.
Mas não neste caso.
Normalmente eu respirava.
Agora, não me bastava respirar. Havia me acostumado com as involuntárias faltas de ar. A taquicardia me seduzira.
A viagem não durou mais que alguns velozes segundos. O andar dela chegou antes, e quase a vi sair quando, por precaução, segurei seu braço. “Posso estar sendo repetitivo, mas avista lá de cima e asfixiante”.
Ela aperta rapidamente o maravilhoso botão que faz as portas fecharem.
Falta de ar.
Medo.
Palpitações.
Estava começando a gostar de tudo aquilo.

Algum lugar de Istambul

Por Flavia Risi

Primavera. 20 de maio. Algum lugar de Istambul.

Já faz 13 dias que eu estou aqui. Não sei ao certo onde. Apenas sei que meus joelhos doem. Ainda não sei por que me trouxeram para cá. Era noite quando eles chegaram, e mal deu tempo de esconder o pequeno Yussef. Como será que ele está?
Com armas em punho e rostos cobertos arrombaram minha porta. A parede, feita de barro, não suportou. Pude ouvir os farelos cederem e deslizarem junto à porta.
Mesmo sem reagir, apanhei. Torceram-me um dos joelhos para que não pudesse correr. Mesmo assim não senti dor. Meus sentidos todos estavam em Yussef. Já caída e sangrando, pude me concentrar apenas nas botas. Vi apenas uma caminhar pela sala. As outras duas se mantinham sobre mim. Quem quer que fosse sabia o que queria. Desmontou com uma chave os fundos da TV, e logo em seguida a jogou no chão: - Droga!
Irritados, me levaram para uma picape. Sob a noite, apenas as estrelas percorriam meus olhos, felizes pela segurança do pequeno.


Primavera. 3 de junho. Ainda em algum lugar de Istambul.

27 dias. Faz tempo que não vejo o sol. A claridade me faz saber do dia e da noite. Ainda não choveu.
Meu joelho está com uma cor diferente. Já não sinto a dor que sentia. A papa que me dão de comida traz às minhas fezes um odor terrível. Estou ficando sem espaço e com dificuldades de me mexer. A rótula do joelho bom me parece maior. Acho que emagreci.
Apenas continuo vendo as botas. Não sei de Yussef ou Rarib. Não sei o que me procuram ou esperam. Só o que ouvi é que estou em algum lugar de Istambul.


Primavera. 7 de junho.

31 dias. Meu joelho está latejando. Tenho implorado por ajuda. Estou com medo de perder a perna. Há dois dias não bebo água.
Eles pedem que eu desenhe o mapa de onde está.
Onde está o quê?
Ameaçaram cortar também a comida.


Não sei se já é verão. 23 de junho.

47 dias. Há dez dias eles vêm alternando, dia-sim, dia-não, o prato de comida.
Hoje ouvi a voz de Rarib suplicando por algo. Arrastei-me até a porta e lhe colei o rosto. Não consegui ouvir mais nada. Gritei por socorro, o chamei, esmurrei já sem forças a porta. Inútil.
A ponta dos meus dedos do pé começava a ficar enegrecida.
Queria poder saber de Yussef. Queria abraçá-lo e protegê-lo.


30 de junho.

Tenho febre. Não tenho certeza da realidade. Pareceu-me ter ouvido um tumulto.
Um tiro! E a porta se abriu pela primeira vez em 54 dias.



Por Viviane Roux*


Faço forca para abrir os olhos, delírios febris se misturam com o que parece ser real. Meu corpo treme de frio, minha cabeça parece querer fugir dali, me esforço para que fique.
Perco os sentidos.


7 de julho.

Passei a última semana indo e voltando de um sono profundo. Lembro de um homem alto, másculo, com o rosto coberto por um pano preto e imundo, me sacudindo pelos braços.
Lembro de chamar por Yussef, de vê-lo brincando no gramado verde dos jardins. Outro homem, não vejo seu rosto, só ouço sua voz grave. Discutem em uma língua que não conheço. Vejo Yussef, adormeço de novo.


11 de julho.

Estou acordada há três dias, a dor me mantém alerta. Chego a gostar dela, me faz sentir viva.
Passo o tempo cantando velhas canções de ninar, não trazem mais comida, não ouço nada, fui esquecida nesse buraco.

Quando fecho os olhos, vejo minha casa, minha família, um prato quente e água fresca.
Explosão. Bomba. Tão perto, medo. O que será?

Sinto a dor aumentar, não vou resistir.


20 de julho.

Abro os olhos. É tudo branco. Sinto cheiro de álcool e a claridade é tanta que demoro a me acostumar com ela.
Se existe paraíso, ele é claro e silencioso como onde estou agora.
Alguém se aproxima. Quem será?


23 de julho.

Sinto uma mão quente segurar na minha. Yussef. Vejo Rarib atrás dele e seu sorriso calmo, há uma cicatriz em seu rosto, mas ele me parece bem.
Não sinto a perna direita, tento me mexer mas sou impedida por Rarib que sussurra em meu ouvido: “Agora está tudo bem”.
Meus olhos se enchem de lágrimas.


Verão. 25 de julho.

Já consigo sentar e uma mocinha de branco coloca lentamente uma fruta incrivelmente doce na minha boca.
Tenho a certeza de que acabou.
Muitas perguntas a fazer, mas Rarib se recusa a dar respostas, talvez porque nem ele as saiba.
Estou tranqüila.
Quero voltar para casa.

Cuba

Por Felipe Han

28 de Abril / 05

Hoje, completo duas semanas em Cuba. A oportunidade de cursar medicina em Havana foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Apesar dos problemas óbvios, sinto pela primeira vez a sensação de produzir algo realmente importante. Tenho saudades, porém espero abafá-las por um propósito maior



15 de Maio / 05

Estou me sentindo bem, quero deixar claro. Entretanto, a vida aqui não é exatamente como eu esperava. Já estava acostumado com a pobreza das favelas do Rio. Achava – talvez por ignorância – encontrar algo muito melhor. Mas vejo crianças pedindo esmola a turistas, como na cidade maravilhosa. Não posso esquecer uma coisa: educação e saúde estão em um patamar de qualidade superior ao brasileiro.



23 de junho / 05

Minha dedicação à faculdade consome todo tempo livre. Manhã, tarde e noite. Gostaria de conhecer profundamente Cuba. Infelizmente agora não há tempo. Isso seria bom para me fazer esquecer um pouco as lembranças do Brasil, que só aumentam, junto com a descoberta de novas semelhanças entre estes dois países.



28 de junho / 05

Quero ligar, mas não tenho grana. Sou pura aflição, sem notícias dos meus queridos amigos e parentes. Será que papai consegue lidar com a diabetes ? Ronaldo e Ana já casaram ? Rogério passou no vestibular ? Mamãe conseguiu o emprego ? Meu cachorro ainda sente saudades ou será que me esqueceu ? Droga, não consigo estudar com tantas dúvidas na cabeça.



29 de Junho / 05

Eu deveria preocupar-me com coisas mais importantes.




Por Mariana Vedder*

Eu deveria preocupar-me com coisas mais importantes. Se bem que agora é difícil identificar o que é, de fato, mais importante. Interiormente falando, sinto-me confuso, bem e mal. Bem por estar aqui, realizando um sonho. Mal pela saudade. Sempre ela: palavra que só existe em português.



30 de junho /05

Antes eu nem ligava se escrevia ou não meus pensamentos. Mas a sensação de estar longe me aproximou da caneta e do papel. Tomara que isso seja bom. Mais um dia sem estudar o quanto deveria. Isso é que não é bom.



06 de julho /05

Prometi a mim mesmo: uma semana sem tocar neste diário. Consegui...
Até Consegui estudar também.



07 de julho / 05

Hoje consegui passar por Havana. Nossa ! Este lugar é um imenso outdoor da revolução de Fidel. E uma placa maior ainda contra os EUA. Chega a ser exagero. Mas é claro que meu olhar é contaminado porque nem sou daqui. Mas já não sinto tanta falta da rotina carioca. Mas saudade eu sinto. Até escrevi uma carta para mamãe. Pra outras pessoas também, mas não enviei.



13 de julho /05

Amanhã meus pais fazem 30 anos de casados. E amanhã também faz 3 meses que não ouço meu próprio sotaque, minha própria língua, a voz de alguém conhecido.
Cuba e Brasil se parecem demais.

Saudades deles, daqueles, dela...



10 de agosto /05

Quase um mês sem escrever. As férias se aproximam e não tenho dinheiro para ir ao Brasil. Voltei a pensar em Juliana. Não devíamos ter terminado. Amo muito essa mulher (a conheci menina, eu também era um menino). Soube que ela vai se casar. Por isso me afastei dessas notas. Um pouco de depressão por não poder mudar nada.



15 de agosto /05

Faltam 30 dias para o casamento de Juliana. Ainda sofro. Mal estudo. Mamãe me ligou de tarde. Quanta saudade. Será mesmo que vale a pena? Só penso nela... Estudar aqui será mesmo o melhor de minha vida?



01 de setembro /05

Não sei se vou conseguir. Mas pretendo esquecer Juliana. Meus pensamentos não me deixam reagir. Tenho prova amanhã: anatomia médico-cirúrgica. Não posso me dar mal.




07 de setembro /05

Dia da independência do Brasil. E da minha também. Preciso estar livre para viver ! Vou voltar para o Brasil. Juliana não pode se casar.



14 de setembro /05

Cheguei ao Brasil. Decidi largar tudo. Não vale a pena viver sem amor. Juliana se casaria amanhã.



15 de setembro /05

‘’Meu amor,
Não poderia ter sido tão feliz o dia do meu suposto casamento. No fundo, bem no fundo, eu estava te esperando. Nunca na minha vida eu tive tanta certeza de uma coisa: o nosso amor. Eu sempre soube que você viria me buscar.
Obrigada por me salvar da enrascada onde eu iria me meter. Obrigada por fazer valer a pena esses 5 meses de espera.

Nunca deixei e nunca deixarei de ser sua. Pra sempre...


Juliana’’

Re: Dólares. Brasil.


Por Inês Nin


Como é bom receber notícias suas. Aqui em Porto Alegre as coisas não são vistas de modos muito diferentes, mas devo dizer que mantenho o bom-humor. Daquela época até hoje muita água rolou, e minhas ilusões permaneceram somente ilusões, que ilustram as utopias e também a ingenuidade de tão saudosa etapa da vida. Você e todos os que faziam parte da minha vida naquela época ainda me são de certa forma muito presentes, como uma parte de mim que representou grandes esperanças e desejos, juntamente com umas tantas descobertas.
Ao mesmo tempo, devo dizer que admiro muito mais a pessoa que sou hoje. Se naquela época não havia como sermos muito diferentes, uma vez que as cores todas pareciam vivas e definidas, hoje vivemos uma época de nuanças, disfarces, e como conseqüência disso tudo, descrença. Mas, justamente por isso, me parece que viver nestes dias de incertezas e decepções é de fato muito mais complexo e, por isso, de algum modo enriquecedor.
Talvez a única coisa que se possa ver com clareza é que as nossas utopias falharam, todas, o que demonstra, ainda que com o peso das descobertas, que acreditávamos poder dar soluções relativamente simples à coisa mais complicada, que é a política. E, claro, conseqüentemente, às nossas vidas.
Se viemos de um tempo em que usar drogas representava a “liberação da mente” e nos era uma subversão contra o sistema, hoje se pode notar que os jovens que ainda encaram a coisa da mesma forma nos parecem perdidos, completamente perdidos. Seria isso um sinal da idade? Creio que não. Aos 36 anos, mesmo estando perdendo cabelos a uma velocidade assustadora (tenho procurado aceitar o fato de que, sim, herdei um gene recessivo que me acabará com os cachos, antes mesmo de perderem a cor), seria idiota pensar da mesma forma. Minha calvície não vai deixar de acontecer porque eu não a desejo, e esta, como umas tantas coisas, temos que aceitar.
Tenho muita vontade de poder revê-los assim que possível, e conhecer a tua menina! Uma filha de vocês dois só pode ser a criança mais adorável; foram os largos sorrisos de ambos o que permaneceu mais claramente impresso aqui na minha memória. Me deixa alegre saber que ainda estão juntos.
Eu, por aqui, estou solteiro desde o rompimento com Olívia, gostaria que você pudesse tê-la conhecido. Após oito anos, a relação simplesmente se desfez, e quando ela veio comunicar-me que iria fazer doutorado na França, apenas a deixei ir. Há coisas e pessoas na vida, que, descobri, temos é que deixar passar. Não conseguiria me imaginar agindo de outra forma.
As coisas aqui não andam muito fáceis, mas tenho me surpreendido diariamente com uma vontade de viver efervescente. Sinto-me disposto a resolver os maiores problemas da maneira mais simples e, até agora, tenho sido bem-sucedido. Quando leio os jornais, confesso que um ceticismo me toma freqüentemente, mas ele não ocupa todo o espaço. Até entender para onde vai todo esse lamaçal, observo apenas, e cuido do que está ao meu alcance. O meu voto hoje é nulo, Augusto, e já é despreocupadamente que te afirmo isso. Nossos parâmetros não podem ser os mesmos que antes. Todas as fórmulas que foram inventadas – está provado – não surtem mais efeito.
É com uma saudade gostosa que me despeço. Prometo ir ao Rio assim que possível! Há tanto a (re)ver por aí. E por tudo é que te digo: concentre-se nos sorrisos. O resto, depois descobriremos.



Grandes abraços,
Tonico.

Re: Re: Oxaca

Por Mariana Vedder


Oaxaca, 6 de dezembro de 2006.


Juju, minha amiga,

Sua carta me deu vontade de chorar. Pensei em você ao meu lado fazendo cócegas na minha cintura para me fazer rir. Uma lágrima teimosa escapou do meu controle e caiu neste papel. Quando o envelope estiver em suas mãos a gota já vai estar seca. Mas meus olhos estão sempre marejados durante as horas em que fico na companhia das lembranças de nossos melhores momentos.
As coisas aqui às vezes me parecem sem solução, apenas me conforto (eu e todos os militantes) com o apoio que recebemos de tantas pessoas pela América Latina afora. Me emocionei com os dados detalhados da sua descrição. Noto que, ao contrário do que insiste o governo em mostrar, muitos brasileiros já desistiram. E com eles se foi a esperança. O que falta ao nosso povo é justamente ela: a esperança. Mas uma esperança projetada para o coletivo. Porque fé na vida, em Deus, Oxalá, ou em si próprios, isso os brasileiros têm de sobra.
Agradeço muito pelo seu empenho e lhe certifico de que não esperava menos de você. Sempre tão responsável, ativa, talentosa. Tinha a mais absoluta das certezas de que poderia contar com os meninos, mas, principalmente, com você.
Não só me lembro das manhãs em que prometíamos, sem sucesso, acordar mais cedo no dia seguinte, como me recordo também de outra jura que jamais cumprimos: a dieta de segunda-feira. Não se preocupe com meu gatinho. Provavelmente ele está na casa de Aline ou Priscila junto com os gatos delas.
Mal posso esperar pelo nosso inverno! Vai ser perfeito assim como todos os outros desde o ginásio.
Guto não respondeu à minha ultima carta. Imaginei mesmo que fosse acontecer desta maneira. É complicado parar alguém estável como ele – bem o oposto de mim – entender que 6 meses não são 6 dias. E que “no balanço das horas tudo pode mudar”. Amo-o demais para prendê-lo durante tanto tempo. Converse com ele, ninguém melhor que você para me representar. Faça-o ao menos dizer que me perdoa e que, quando esse tempo passar, seremos de novo o casal de revolucionários mais bonito. Já que foi você mesma que nos chamou assim, lembra? Não quero magoá-lo.
Encerro a carta tentando te mostrar minha saudade que aumenta a cada dia.
Uma única frase traduz isso:
Amo você eternamente!
Beijo de esquimó,
Mari :-)



Re: Oxaca

(Para ler a carta anterior: http://textosoficinauff.blogspot.com/2007/06/re-oxaca.html)

Por Juliana Risi
Querida Mari,

Só tive sua carta em mãos no dia 8 de novembro. Acredito que você tenha colocado o CEP errado. Fui ao correio reclamar, afinal, disse-me no e-mail (com as fotos) que havia mandado em outubro.
Desculpe os vinte dias de atraso. Sabe como anda minha vida! Mostrei sua carta para os meninos. Estão cada qual mais Zapata. O que você – nem tampouco eu – imaginaria é a proporção alcançada pelo seu pedido, o que ajuda a explicar a demora da minha resposta. A esquerda e os nem tão esquerda assim se empolgaram com a causa. E vai além! A fecilidade da comunicação proporcionada pelos meios fez com que grupos de todo o Brasil se mobilizassem. Agora, contam-se 15 mil integrantes que participam de manifestações em frente aos consulados do México. A parte mais emocionante vem agora: parte dos grupos está planejando uma ida ao México, exatamente para a virada do ano. Querem transformar o reveillon em uma espécie de caos. Conto com sua ajuda também. Alem do mais, poderemos nos ver e trapacear a saudade. Imagine milhares de brasileiros na Praça Central! Parece-me que o povo já está tão desesperançado dos problemas daqui que buscou uma causa não-perdida para lutar. Afinal, quando Collor, Maluf e até Clodovil (que deixa de ser piada depois dos outros dois) se elegem, instala-se a sensação de cansaço e desesperança.
Confesso, pois, que minha viagem se justifica por sua causa. As aulas sem você me soam estranhas, apesar de todo aprendizado, claro. Paula, Ana e Camila? Não... Cansei de “patricinhas” imóveis para não desfazer o cabelo. Eva e Angélica? Evangélicas, não me suportariam “pecadora”. Edith e Júlia? Passam o dia em casa. Não saem, e além do mais, detestam futebol, delicadas demais para correr, podem até quebrar as pernas. Cassandra e Ed? Brutas demais – acho que me quebrariam as pernas! Não tem ninguém nesta turma, Mari. As caricaturas dos professores, a vontade de mudar o lugar em que vivemos, o sorriso instantâneo e involuntário do nosso encontro... Faltas nunca findas de uma amizade indescritível a uma distância desarvorada.
Lembra-se de toda manha?\uma corrida desesperada até o ônibus e uma promessa ofegante: “a partir de amanhã vamos levantar mais cedo...” E a volta? Sem a minha companheira de ônibus...
Já arrumei uma menina para ocupar seu quarto, assim não pago sozinha. Calma! Por seis meses, eu sei! O plano para o inverno permanece, e a entrevista com Aparecida Moraes – como havia pedido – já está marcada.
No mais, vou levando... “a vida segue sempre em frente, o que se há de fazer??”
Seu gato está sumido desde a sua partida. Coloco leite toda noite para ver se ele volta, mas é sempre um malhado malandro que se aproveita.
Eu, Guto e Caco só falamos em você. Acho que faz parte do nosso “luto”. E claro, eles também confirmaram os planos de julho.


“Passa tempo
bem depressa,
Não atrasa,
Não demora”

Vinicius de Morais

Seis meses. Desde o ginásio juntas e pela primeira vez ficamos longe.
Minha melhor amiga, recolhida do mundo, à pinça, para entrar no baú dos grandes amigos.


Sinto saudades...
Abraços e beijos na bochecha,
Juliana


Oxaca

Por Mariana Vedder


Oaxaca, 20 de outubro de 2006.

Querida Juliana,

Já estou com saudades de todos aí. Não sabia que seria tão rápido! Em três dias sinto falta de cada detalhe do Brasil. As pessoas aqui no México são bem receptivas com os brasileiros. Principalmente de estudante para estudante. Tudo é muito bonito, as flores nas feiras, as roupas das mulheres, os artesanatos. As crianças fazem cavalinhos e uns guerreiros de retalhos, uma delas me disse q são os líderes do Movimento Zapatista. Lindo, né?
Mas nem tudo anda tão bem por aqui, Ju. Esse povo precisa de apoio. Ontem fiquei muito assustada, mal pude voltar para o hotel. As ruas estavam tomadas. As pessoas gritavam palavras de repúdio ao governador, carregavam faixas contra a corrupção. Vou tentar te explicar o problema:
Aqui em Oaxaca, existe um local onde periodicamente ocorrem assembléias populares. Nessas assembléias são discutidos os assuntos ligados ao governo. Em uma delas houve a proposta de retirar o atual governador do poder por vários motivos, e a proposta foi acatada. No entanto, o governador não aceita a decisão do povo, se recusa a sair. E isso não é tudo! Para completar, o candidato que assumirá a presidência no ano que vem (que é de direita) foi eleito com fraude. O povo está nas ruas exigindo justiça, gritando o nome do verdadeiro vencedor: o candidato de oposição, Obrador.
Meu objetivo ao lhe escrever esta carta é deixar você a par de tudo isso, já que os principais veículos de comunicação se recusam a noticiar tudo isso. Preferem apenas chamar as pessoas de baderneiras. E também gostaria de poder contar – sei que posso – com o seu apoio para mobilizar as pessoas da UFF, demonstrar o apoio à causa. Os mexicanos, para continuarem lutando, precisam saber que não estão sozinhos!
Bom, vou me despedindo por aqui. Acho que já te enchi demais com isso. Vou enviar fotos por e-mail. Espero que esteja tudo bem por aí.

Um grande e saudoso abraço seguido de um beijo na bochecha.



Mari :-)

Leia a resposta da carta em: http://textosoficinauff.blogspot.com/2007/06/re-oxaca_04.html



Como atuar politicamente nuna época de alienação?

Por Inês Nin

A alienação é necessária. E se não necessária, ao menos compreensível. É somente aparência, também, em muitos casos. Vem da descrença. E do estímulo ao não-pensar. Da rendição a uma realidade que nada, aparentemente, podemos fazer para mudar. Alguns dirão:

- Por que mudar?

Algo como um carpe diem. Só um entre tantos conceitos envelhecidos que são adotados hoje. Todos os fundamentos, teorias e práticas que vejo só de andar pelas ruas possuem profundas rugas. As vozes todas soam como ecos finitos, provocando risadas dos mais atentos, indignação de outros. Alguns ainda crêem. Dizem não ser no sistema, mas nos mecanismos de mudança existentes. São conhecidos como tal, mas não são nada além de parte dele. Protestos, greves, ONGs e demais maneiras de se organizar, todos foram incorporados pela sociedade, pelo sistema, pela política em geral.

O que é democracia? Democracia não existe. Meus pais, ao ouvirem isso, lembrarão da época em que a afirmativa era levada ao extremo, explicitamente. Tempos de polarização aqueles, drásticos em todas as suas medidas, de idéias determinantes e de repressão. Mas a verdade é que, passadas décadas, o que foi recuperado não chega a se aproximar da liberdade, agora sendo utópica em minhas palavras. Não seria ela sempre a utopia máxima? As utopias hoje soam todas ocas, e verdadeiramente o são.

Alienados são aqueles rendidos ao supracitado sistema, fiéis da sociedade de consumo e de suas muletas particulares. Adeptos da cultura do não-pensar, das opções mais óbvias e ao alcance. Às vezes, da sobrevivência. Em outros casos, de toda a exacerbação, desde o consumo até a própria inconseqüência de seus atos. Na maioria das vezes, no entanto, são pessoas as mais comuns, que trabalham para pagar as contas, casam, têm filhos, escrevem besteiras na internet (os que têm acesso), passeiam no shopping nos fins-de-semana. Assistem à televisão e votam porque têm que votar, votam porque é seu “direito” (e não obrigação), enfim, atuam dentro de seus limites do mais pleno conformismo.

Alienados também são aqueles, em geral jovens (mas também obstinados de idade mais elevada), que crêem em gritos de protesto ao invés de livros, em passeatas inúteis por causas distantes e em ideologias fora de contexto. É uma espécie de alienação talvez não amplamente reconhecida como tal, por estar disfarçada de engajamento político. Como os movimentos estudantis com mais fumaça que idéias, cada vez mais distanciados do chão.

E onde seria este chão? Talvez a maior pergunta que cabe aqui, inevitável para estes tempos. Muitos tateiam, mas ainda acredito ser o mais grave o fato de um número ainda maior de indivíduos acredita saber onde pisa. E se eles não sabem exatamente o que deve ser feito (justamente por ser a crença frágil e infundada), patinam em suas ações, uns realmente tentando acertar, ainda que sobre estruturas em ruínas.

- Os fins justificam os meios e seremos todos felizes – eu vou ganhar a minha fatia desse bolo, mesmo que a massa desande (tinha um ovo estragado).

Há os que dão risada de tudo, vestem máscaras espalhafatosas de cinismo e com eles vai tudo bem. Aliás, para o bem da economia atual, de tendências egoístas baseadas em idéias (supostamente) libertárias, todos os que têm os bolsos cheios estão safos, serenamente despreocupados. Para estes poucos afortunados, sempre haverá soluções. Liberdade, igualdade e fraternidade brindados com espumantes caríssimos, todos os anos!

E, afinal, como pode ser possível atuar na política com lucidez, neste contexto de disfarces e causas vencidas? A pergunta não se responde, mas reverbera no pensamento de umas tantas pessoas. Penso que não ser adepto de respostas prontas (para nada) pode ser um passo. Abrir-se a novas idéias que podem vir a parecer plausíveis, concretizáveis.

Em tempos de desilusão, de tentativas frustradas e fraudes cotidianas, resta sim o ceticismo. É tanto a alternativa fácil do ponto de vista da sobrevivência quanto a mais inevitável delas. Mas, que fique claro, não se trata de um ceticismo surdo e conformado. É um estar atento ao que acontece, sem perder de vista a si mesmo. Qualquer coisa que podemos mudar começa no que está aqui e em volta.

Uma Fotografia

Por Maria Gabriela Raposo


“Custa-me muito olhar para esta fotografia da minha filha mulher”.
Tenho álbuns e álbuns dela em bebê e menina; na adolescência passei a fotografá-la menos e, sobretudo, a esquecer-me de organizar as fotografias.
Não há mais nada escrito no verso, nenhuma indicação sobre o ano ou até mesmo do momento em que a fotografia foi produzida. Não sei com que idade ela está nessa foto. E não fui eu quem lhe comprei a roupa que veste. Não consigo precisar o momento que as roupas e até as situações eram construídas por mim especialmente para serem fotografadas. Há inclusive fotos que não lembro de ter tirado...
Observando estes muitos álbuns tão organizados, com legendas completas contendo o dia, hora e local precisos, lembro do quão insegura me sentia naquela época. Pensava que o tempo melhoraria esta insegurança. Ela não precisaria tanto de mim, se alimentaria sozinha, andaria sozinha, iria à escola sozinha, não mais ligaria para buscá-la em algum canto e em pouco tempo passaríamos semanas sem nos ver. Ligaríamos apenas para perguntar se está tudo bem, e uma breve resposta seria proferida sem emoção, pois ela está sempre lotada de afazeres e de amigos à sua volta. Sim, ela não precisa tanto de mim agora. Será que ainda precisa pelo menos um pouco? Continuo insegura pelo fato de não poder ajudá-la tanto.
Lembro-me exatamente de um dia em que eu dormia profundamente e o telefone toca, por volta das sete da manhã. Era minha filha aos prantos. Ao ouvi-la daquela forma, entrei também em desespero e quase não a deixei falar. Ela contou-me que chovia muito, seu guarda-chuva havia quebrado e acabava de pagar o ônibus com vinte reais e esquecer o troco. Dei-lhe uma bronca por assustar-me daquela forma por motivos tão tolos, gritei até. Ela apenas disse “Sei que você não poderia me ajudar, mãe. Mas achei que sua voz me acalmaria. Acho que você não consegue mais me ouvir”. E, a partir deste dia, ficamos cada vez mais distantes. Diminuíram as fotos e os telefonemas. Na verdade, esta aqui é a foto mais recente. Não há nada escrito, mas sei que se trata de uma das primeiras festas da faculdade. Época em que ligações ainda eram freqüentes. Custa-me olhar para esta foto. O seu ar de independência é quase irritante. Seu sorriso parece autêntico assim como o dos amigos. Parecem mesmo felizes. Todos da foto seguram latinhas de cerveja. Sim, ela já é uma mulher. Nem ao menos sei onde ocorreu esta festa. Já não tenho mais tantas informações assim sobre sua vida. Nem lembro se ela dormiu em casa.
Engraçado, nas fotos de sua adolescência há sempre um vulto. Seu pai estava sempre por perto. Em quase metade das fotos aparece como um figurante. Era bom quando ele estava conosco. Agora, assim como você, tem outras prioridades na vida. Penso em como será daqui a alguns anos. Os afazeres tendem a aumentar, as visitas, já tão escassas, a diminuírem ainda mais. Só sobrarão fotos. Gosto tanto delas. Remetem-me a emoções, vão se tornando angustiantes à medida que se tornam mais recentes.

Dólares. Brasil.

Por Flavia Risi

Meu caro amigo,

“Me perdoe por favor, se não lhe faço uma visita...
Mas como agora apareceu um portador...”.

Sei que já faz muito tempo... 1984. Diretas Já. Nos sentíamos heróis ilustres dos livros de História. Robespierre. Che Guevara. Simon Bolívar e San Martín. É, nossos nomes estariam lá... Nas últimas páginas do livro; Aquela parte que é vista só no final do ano, depois de percorrer o pau-brasil, o açúcar, o café... O império, a República... Marechais, presidentes... Ditadura e, enfim, nós. Os revolucionários de 1984. Tínhamos 14 anos e na sua casa planejávamos como íamos transformar o Brasil. Ensaiávamos capas e vôos... Super-heróis. É, super-heróis brasileiros...
Hoje, meu amigo, a liga da justiça usa outra cueca. Lembra daquela sunga vermelha que vestiam sobre o uniforme? A nossa de hoje não é mais vermelha. Porém, igualmente poderosa: é cheia de dólares.
Nosso super-herói, aquele mesmo que acreditávamos, hoje parece gordo e cansado. Exausto até mesmo para saber das coisas que acontecem. A Liga foi desestruturada. Existe um traidor, ou mais. Traidores porque nos fizeram colocar nossas próprias capas neles e, hoje, não se lembram nem mesmo da cor delas.
É caríssimo amigo. Não estou otimista.
- Homens com dólares na cueca?
- Não estou otimista.
- Pagar R$ 44,00 só de assinatura de linha telefônica?
- Não estou.
- Dentro de 50 anos os recursos naturais da Terra estarão esgotados?
- Não.
- Mensalão, Sanguessuga, compra de votos, “little Rose” e “little Boy”... Chacinas, tráfico, meninos de rua e homens de rua, crianças fora da escola, crianças mortas de formas inumanas, fome, tristeza...
- É... Tristeza. Impossível ser otimista. Será que meu neto saberá o que é Amazônia?
Hoje você está longe. Sinto saudades de você e da nossa coragem. Da nossa esperança e daquela ilusão. Não só a pátria, mas, o mundo foi traído. Nem mesmos nós, com as camisas amarradas no pescoço em arriscados saltos em “vôos”, poderíamos fazer alguma coisa...
Ivete e eu continuamos os mesmos que você tanto conheceu. A pequena grande novidade, que este mês faz 2 anos, ainda lhe é inédita. Talvez por cauda dela o medo do mundo tenha se transformado em pânico. Não agüento mais as cores de nossos super-heróis e não agüento mais a ausência da nossa revolucionaria dupla encapada.
Não sei se você lembra do Caco... Aquele que tocava violão e era o encantador das mulheres?! Hoje é tucano e vereador. Sempre que vem aqui em casa há discussão. As verdades absolutas e a cara de pau dele quando se fala em política... Irritam.
O resto da turma, como eu, está casada e distante.
Sinto saudade de você caro amigo.
Sinto saudade de nos dois em 84.
Quando você vem nos ver?


Muitos abraços, carregados do nosso humor,


Augusto.

Leia a resposta da carta em: http://textosoficinauff.blogspot.com/2007/06/re-dlares-brasil.html

Encontro Marcado

Por Buno Fernando

Quem nunca ouviu aquela expressão inspirada em um epicurismo afobado? Eu vivia atormentado por obrigações travestidas de conselhos. Pouca coisa que estivesse além do primeiro caderno em meu jornal era digno de minha atenção. Vez ou outra, buscava alguma notícia que me atraísse. Porém, tudo do meu gosto circunscrito. E mesmo assim, todo dia era um conselho diferente que eu ouvia. Se saía pela manhã, no mínimo três “recomendações para a vida” eu recebia. De minha vizinha de porta, D. Josefa, a advertência vinha de uma das inúmeras revistas semanais que ela colecionava. Não bastava comprar apenas uma; cada editora publicava o seu periódico de tal maneira a não se imitarem. Dizia D. Josefa: “Nesta, as receitas de doces são as melhores, mas não espere por fofocas quentes. Se as quiser, veja aquela outra, que não tem receitas muito boas, mas os moldes de ponto-de-cruz são divinos”. Ela uma especialista. Deveria ser ombudsman. Cada dia da semana era reservado ao destrinchamento de uma edição. E sempre que eu saía para o trabalho, uma nova pérola. “Faça isso”. “Seja isso”. Odiava aqueles imperativos. Como bom trabalhador, suporto-os apenas quando são de meu superior.
Minha mão ainda estava na maçaneta. Pensando sobre a previsibilidade da próxima cena de minha vida, me questionava: “Por que a D. Josefa não reclama de seu marido diabético que assalta o açucareiro pela madrugada?” Seria assim: “Bom dia, D. Josefa, tudo bem? E o Sr. Pasmado?”, para o que responderia: “Tudo bem, meu filho! Não é que ele atacou novamente o pote de açúcar enquanto eu fui ao jornaleiro. O médico já falou que a perna dele corre o risco de gangrenar. Mas não adianta, por mais...”, e por aí seguiria. Não tenho dúvida. Sou uma pessoa muito paciente. Se fosse preciso sairia meia hora antes, caso minha conversa matinal com a D. Josefa fosse sobre saúde. Realmente, saúde é um dos grandes problemas da 3ª idade. Talvez por isso, quando chegamos a ela, nosso papo assuma nuanças um tanto hipocondríacas. Quem me dera dialogássemos sobre pressão alta, osteoporose, artrite, todas essas doenças que ameaçam velhinhos. Mas eu sabia que após a troca de bom dia, ela me contemplaria com o pensamento do dia. Maldita seção em periódicos! Por que ela existe? Ou melhor: por que a lêem? O que pensam que são? Magos? Gurus? Profetas? Por que dão tanta importância ao que escrevem? Seria assim se soubessem quem as cria?
Sabia que ao passar pela portaria se daria mesma situação. Seria o porteiro Bill, nomeado de Severino por uma plaquinha em sua mesa, e seu inseparável, e indesligável, rádio-relógio. Sempre sintonizado na AM, em uma daquelas freqüências em que parece haver uma única programação, mudando apenas o locutor. Muito semelhantes aos periódicos da D. Josefa, essas estações são verdadeiras revistas radiofônicas de assuntos gerais. Enquanto no meio impresso procuramos o que queremos através das páginas, pelo rádio temos um horário determinado para cada seção da revista. Também se ofereciam conselhos nesses programas. Sem problemas para mim, ouço pouco rádio, e o meu nem possui AM, dizem que é tecnologia ultrapassada. Mas o Bill ouve. E muito.
Quando saio do elevador, passo pelo Bill. Cumprimento-o, e de praxe pergunto como vai. Concluída a formalidade da primeira etapa, ele deveria fazer um comentário sobre sua patroa. Ou sobre seu herdeiro que estourou o tampão do dedão do pé jogando bola na rua de paralelepípedos mal colocados perto de sua casa. Até mesmo uma fofoca nova sobre alguma moradora do prédio seria bem-vinda. Adoro fofoca. Mas não. O cumprimento que recebia pela manhã era o seu típico “dia”, seguido do conselho que ouvira na rádio. Já tentei sair para o trabalho bem cedo, na esperança de que aquela consultoria profética e imperativa não tivesse sido proferida. Em vão. Essas mensagens eram narradas em várias sessões, e a primeira, antes das 6:00. Nessa ocasião, acordar cedo não me serviu para escapar das palavras do “guru”, recitadas pelo Bill. Muito menos da D. Josefa pude escapar. Ela era uma velhinha muito solitária, e o ato de me presentear com algumas palavras de reflexão tinha sido incorporado a sua rotina diária. Tipicamente exótica, como com qualquer pessoa que se sinta assim.
Não poderia esquecer o terceiro personagem de minha via-crúcis diária. O faz-tudo do prédio, Joaquim Feliastério, vulgo Fred, não sei por quê. Pegava no trabalho às 7:00. Vinha do outro lado da cidade e acordava às 4:00. Apenas molhava o estômago com um pouco de café barato. Religiosamente, comprava o jornal. Aquele que o seu salário permitia. Conheço esses jornais. São muito parecidos com as revistas da D. Josefa, e os programas da rádio AM, como os que Bill ouve. Também naqueles há a seção de “conselhos grátis”, pode não ser esse nome, mas todas poderiam ser assim traduzidas. O Fred não estaria sendo lembrado se ele, também, não lesse sobre esse tema, e se ele, como os outros, não comentasse sobre eles comigo.
Sempre quando passo pelo Fred poderia ser: “Vamos lá! Me conte sobre os moleques que destruíram seu jardim. Reclame da D. Josefa, que quando manda o lixo para a lixeira, a sacola sempre está escorrendo aquele chorume e ela nem para dar um jeito”. Ledo engano. Por que acreditaria que pudesse ser diferente? Até o Fred! Dizia ele: “Olha, meu amigo, seja assim...”, “Faça as coisas desse jeito...” Ele não declarava sua fonte de inspiração, mas eu sabia sua origem. Era impossível não saber. Feliz foi o dia quando tentei escapar do Bill e da D. Josefa em vão. Feliz porque pelo menos do Fred eu escapei.
Mesmo que não encontrasse os três, eram ligações, encontros inesperados pela rua, e-mails, enfim... todos tinham conselhos para mim.
Quando, finalmente, abrisse a porta seria mais um dia assim. Entre o girar da maçaneta e o meu devaneio lamurioso, toca o telefone. Era Sonia, a minha melhor amiga do trabalho e também a maior fofoqueira de lá. Não necessariamente nessa ordem.
- Bruno?
- Oi, Sonia, pode falar...
- Você não sabe da novidade que descobri pelas bocas miúdas.
- Vamos, diga logo antes que me atrase para o trabalho.
Eu trabalhava em uma agência de notícias, e há alguns anos estava insatisfeito, desde que fui mandado para aquela área, responsável por seções em diversos jornais, revistas e programas de rádio.
- Jonas se aposentou, lembra dele? Não importa. Já tô sabendo que você sairá daquele porre de seção e assumirá a dele.
- Cê fala sério? Ou é mais uma fofoca?
- É sério, homi. Não pude resistir a te dar essa notícia logo. Você sabe que minha anteninha está sempre ligada. Você sempre briga comigo porque eu fico prestando atenção na conversa dos outros. Mas dessa vez valeu a pena, e muito. Pode confiar em mim, ouvi isso nos corredores da boca do Paulo. Soube também que ele saiu com...
Tive que interromper sua verborragia.
- Tudo bem, tudo bem. Me deixe ir. Se eu chegar atrasado não ganho o cargo.
- Ah é, é, é. Pode ir, que quando você chegar te falo sobre o que rolou na festinha da semana passada. Tinha que ter visto a Maria...
- Tchau, Sonia!
- Desculpa. Beijo e até logo.
Aquele devaneio lamurioso evanesceu. A D Josefa foi a primeira pessoa naquele dia a receber um conselho criado por mim, o qual ela ainda não tinha lido em nenhuma de suas revistas.

Fotografia

Por Clarissa Nanchery

“Custa muito olhar para esta fotografia da minha filha mulher.Tenho álbum e álbuns dela em bebê e menina; na adolescência passeia a fotografá-la menos e, sobretudo, a esquecer-me de organizar as fotografias.”

Não. Não era propriamente esquecimento, posso ver nitidamente que se trata de refutar um gesto que há tanto significava o “fazer” devoto de um pai que admirava e amava com um sentimento racional.

Essa mesma racionalidade que hoje me traz angústia e solidão. Sim, estou só, de fato. Mas não é da falta de companhia que falo. Refiro-me, sobretudo, à situação de não ter a quem dirigir as mais doces afeições e saudades de um homem de cinqüenta anos refugiado na eterna Europa. Há quem ainda me questione sobre minha bela filha.... Não nem a ela todo o carinho que guardo pode ser entregue.
Como se parece coma mãe! O sorriso é o mesmo. A postura impositiva.... Talvez haja nela o mesmo tom arrogante de quem olha por cima; como Dulce o fez por tantos anos. Os cabelos longos e negros... A maneira explosiva e expansiva de falar...
Dulce deveria imaginar a dor que me causaria ao mandar-me esta fotografia. Decerto pensou, mas me enviou ainda assim. Só ela teria um gesto tão egoísta. Como não se ateve ao motivo de meu afastamento? Como pode quebrar minha redoma e enfiar-me na guerra sem ao menos consultar-me se era esse o meu desejo? Coisas de Dulce. Enfrenta as mais rígidas barreiras para fazer valer a sua vontade. Sempre foi assim: o que ela queria era o que deveria acontecer; sem pensar na repercussão que ganham as palavras e gestos, e munida da mesma retórica convincente de quem está absolutamente certa.
Até nisso Ana faz lembrar cada vez mais minha ex-mulher. No último encontro que tivemos, brigou, encarou-me e quase me convenceu de que a mãe não estava errada, nunca errara e que tudo se justificativa se eu notasse o quanto havia sido culpado. Culpado de quê? Não querer ver o que se atrevia a mostrar-se? Talvez seja isso! Mas repito tal frase sem nenhuma convicção e olho esse álbum repleto de fotos antigas sem conseguir perceber a grande culpa que teimam, mãe e filha, em me atribuir.
Éramos felizes desde sempre, desde o nascimento de Ana. E não há o que duvidar: vejo, em cada um desses momentos fotografados, a minha fisionomia contente e realizada, depois de tanto tentarmos a chegada de um filho que pudesse chamar de “meu”. Seis anos precisamente. De fato não foram as épocas mais felizes de nossas vidas... Recordo-me de acusações e injúrias que lançávamos um sobre o outro. Falta de paciência, diria até falta de respeito, mas amor nunca faltou. Pelo menos, não a mim. Dulce vivia pelos cantos sem brilho, sem o doce de seu nome. Animava-se apenas quando estava longe de casa. Mas sempre acreditei que tudo isso representava uma atitude normal de uma mulher ansiosa pela chegada do filho e que, perto do marido, não conseguia deixar apenas latente a situação que vivenciava. Era isso. Era apenas isso o que me passava pela cabeça, não podia ser outra coisa.
A fotografia de Ana na mão não me traz, exatamente, sentimentos perversos, nem tampouco os mais bonitos. De belas ficam apenas as lembranças de ter um lindo bebê nos braços, de sua infância festiva e agitada. Prefiro esquecer a adolescência complicada da personalidade que estava se formando cada vez mais diferente da minha. Da mesma maneira que tentarei esquecer a fotografia dessa moça estranha na mais remota gavetinha de meu armário.
Minha racionalidade não me permite amar e ter saudades de uma filha que não é minha, de uma moça que não fui eu que gerei.


Bagdá. Iraque. Meus primeiros dias como correspondente.

Por Clarissa Nachery

Não é que eu seja propriamente um americano crítico. Não escrevo agora pelo ofício que exerço. Não desejo que me leiam com a mesma ansiedade de um jornalista que almeja reconhecimento. Apenas estou desolado, e como se retornasse ao colo de minha mãe nesse instante, quero falar e chorar...
Passaram-se vinte dias desde que cheguei a Bagdá. Horror. Medo. Tristeza. Por mais intensa que seja a palavra, dificilmente poderá conservar-se “boa” mimese do que tenho sentido durante esse período. Ah! Lembrei-me de outra bastante pertinente: indignação.
Indigno-me pelo meu país que tanto se autoclassifica poderoso e capaz de sanar os problemas do restante do mundo. Como somos petulantes! E como muitos americanos realmente acreditam nessa teoria hipócrita! Mesmo eu... Cheguei aqui crendo no bem que estávamos fazendo para essa população tão violentamente reprimida por um ditador sem escrúpulos. Ingênuo, prepotente que sou.
Indigno-me pelos meus governantes que desejam enganar ao planeta com frieza e dissimulação de dar inveja ao melhor de todos os advogados do diabo. Mentiras que dizem... mentiras que nos fazem contar...
E certamente a maior dentre as indignações é por mim mesmo. Relato todos os dias fatos que muitas vezes não vejo. Tenho que transmitir aos meus compatriotas informações destorcidas sobre os soldados americanos que aqui estão. Não! Eles não vieram para cá fazer o bem!Dezenas de pessoas inocentes são mortas. Eles torturam e agridem cidadãos que não têm como e nem para onde correr, como se fossem animais podres, fétidos, anulados de condições humanas.
È isso que vejo.
Não é isso o que falo.
O pior dos enganadores frios e dissimulados... È através de mim que o mundo sabe que os Estados Unidos são “bonzinhos” e “amigos” dos iraquianos. . Sou eu quem narra histórias comoventes de soldados que, nas horas vagas, levam criancinhas à escola; eu quem narra o triste fim de heróicos lutadores americanos em terras alheias. Parece homérico e grandioso, mas na verdade apenas reflete casos isolados e previsíveis diante da trama que eles mesmos inventaram. E certamente este não é um “gran finale” do qual a família dessas pessoas pode se honrar. Eu sentiria vergonha de um filho que tivesse ido para um país em guerra lutar por causas injustas, defender pessoas que não precisavam desse tipo de “defesa”, muito menos a mereciam.
Ontem entrei nas ruínas de um prédio com uma equipe para fazer umas fotografias. Num cantinho, bem escondido, estava um senhor com duas crianças pequenas. Ele não podia se levantar, tinha as pernas feridas. Balbuciaram alguma coisa e o pai falou alto com os filhos que começaram a nos atirar pedras e a nos xingar enquanto fotografávamos.
Foi o que aconteceu.
Não foi o que escrevi.

NEW YORK TIMES, 15 de outubro de 2006.

“Família de iraquianos é salva por repórteres americanos”

Páginas

Por Gabriela Hazin

Não sei por que resolvi falar sobre isso agora. Uma sensação de angústia, dúvida de me sentir tão pequena diante do mundo; incapaz...Será? Não sabia. Nesse momento eu me sentia assim. Tentei achar resposta para vários problemas que me perseguiam; estava sem emprego há alguns meses e havia perdido a pessoa que mais amava há quinze dias do acontecimento desse dia: o meu pai.
Nunca conheci a minha mãe. Ela faleceu logo que nasci com uma hemorragia interna. Meu pai sempre cuidou de mim. Foi meu protetor, meu conselheiro, minha base para trilhar os meus caminhos.
Eu tenho uma filha; penso nela todo dia e o que posso ensiná-la. Sou separada. Mas isso não me abala; “Não era pra ser”, já dizia o meu pai.
Naquela manhã, eu saí para mais uma jornada de entrevistas; a situação não estava boa em casa, eu tinha que pagar as contas, colégio, alimentação. Não queria que nada faltasse para a minha filha de apenas 13 anos e já chegando para mim dizendo: “Mãe, eu te ajudo, eu posso arrumar algo para vender”. Não queria sacrificá-la a isso, não era justo; ela tinha que estudar; sempre defendi isso.
Depois de ver várias portas se batendo na minha frente, achei que tudo estivesse errado em minha vida. Afinal como eu iria sair dessa situação? Eu tentava entender mas não achava resposta; o mundo se fechou para mim e eu me vi presa.
Saí pelas ruas à noite naquele dia frio tentando buscar respostas. Eu achava que todos olhavam para mim e me chamavam com os olhos de incapaz, incompetente.
Me entreguei às drogas. Não sei como pude me render assim ao meu problema entregando a minha vida ao nada. Caminhei sem parar durante boa parte daquela noite; eu me sentia leve, deixando o vento me levar. Esquecera dos problemas, do mundo. Mas, quando vou atravessar a ponte e olho para aquele horizonte infinito de águas, quero que ela me leve, me possua.
Eu abri os meus braços e desejei que o vento me levasse, me guiasse para o caminho certo; vi o rosto da minha filha. Como pude fazer isso comigo e com ela? Eu me encontrava completamente dopada de uma substância que não me deixaria mais ver aquele sorriso da minha filha; as lembranças boas da vida. “Aterrissei” e continuei andando.
Busquei ajuda entre amigos e parentes próximos, consegui superar essa barreira. Hoje resolvi vir aqui contar isso para vocês, porque eu não cheguei a me deixar levar pelas drogas, mas poderia ter acabado com a minha história de vida prejudicando também as pessoas à minha volta. Sendo esse lugar uma terapia em grupo e por todo apoio que vocês me deram, deixo registrada essa parte da minha história. Obrigada.

Estudos de Mídia

Por Aline Carvalho

Quando me perguntam o porquê de ter escolhido “Estudos de Mídia”, a resposta nem sempre vem pronta. Inclusive, estar neste curso garante 15 minutos de assunto em qualquer conversa em que o tema seja levantado. Entre uma série de indagações, curiosidades e opiniões – algumas nem sempre tão receptivas assim – a pergunta central é “Mas por que Estudos de Mídia?”
Por que não somos Comunicação, por que a criação de um novo departamento, se é um curso de pós-graduação ou politécnico, qual o nosso mercado de trabalho. São muitas as dúvidas, algumas nem mesmo nós sabemos responder. Independentemente da opinião pessoal de cada um, ou a motivação para estar fazendo este curso, a questão – muitas vezes incompreendida - é que não há uma definição estanque para isso. Tanto em Estudos de Mídia, como em qualquer outro curso que esteja aberto para as tendências do mundo atual, da academia e do próprio mercado de trabalho – ou pelo menos é assim que eu imagino que deveria ser. Vivemos em um mundo onde a cada dia surgem novas tecnologias, conceitos e processos, e a tendência é a de integração de diferentes áreas de conhecimento. É exatamente neste sentido que o curso é pensado.
Acredito na proposta do curso porque propõe uma análise crítica da mídia como um todo, enxergando nos processos comunicativos um sistema integrado e aberto, que a todo o momento se apropria de novas fórmulas e suportes. Ao invés de se prender apenas a problemas referentes a habilitações específicas, a proposta do curso é pensar qual o papel dos meios de comunicação, como funcionam e qual a sua aplicabilidade prática na sociedade. E, dessa forma, produzir, e não simplesmente reproduzir.
Por ser um curso novo uma característica bastante positiva é a proximidade da coordenação e dos professores com os alunos, o que possibilita uma construção coletiva, livre de certos vícios e hierarquias que cursos mais tradicionais costumam ter. E esse diálogo é importante à medida que os alunos são estimulados a pensar novos conteúdos, formas e soluções, o que só tem a acrescentar ao nível de experiência.
Além disso, não acredito que o diploma de um curso defina a perspectiva de trabalho da pessoa. Nada impede que alguém formado em “Estudos de Mídia” seja um ótimo profissional na área de publicidade ou cinema, por exemplo. Primeiro, porque o mercado busca profissionais competentes e criativos, o que vai muito além de um simples certificado acadêmico. Depois, porque que faz a formação é o próprio aluno, buscando outros recursos e especificações, o que só tende a acrescentar na experiência de vida e profissional.

Cafe Wepler

Por Juliana Risi

“Foi num fim de tarde de um dia chuvoso que espiei uma novata no Café Wepler. O aperitivo que ela pedira mal fora tocado. Aos homens que passavam por sua mesa, ela dava um olhar frontal e firme. Era discreta e digna, intensamente contida. Estava à espera. Eu também esperava.”
De fato sua aparência não fugia às características imaginadas. Cabelos curtos e loiros, pele clara, levemente colorida por sardas, estatura mediana, e certamente com uma postura de quem sabia as razões de estar naquela hora e local.
Fitei-a com o olhar ininterruptamente. A resposta me foi imediata e consciente. Segui em frente rompendo a entrada. De canto de olho observei seu movimento calmo e aparentemente indiferente ao repousar a nota de dinheiro sobre a mesa. Esperava por ela na primeira esquina. O guarda-chuva aberto ofuscava minha presença. Na rua deserta alguns poucos guarda-chuvas desafiavam o dia chuvoso. Tão logo fixei-me no local, pude ouvir uma voz firme e delicada:
- Cheguei a duvidar que viria.
- Sua dúvida é válida. Ela trará sua futura confiança na minha palavra.
- Pensava que devesse confiar em você como um todo. - respondeu desconcertada, fitando meus olhos como se desafiasse.
- Pois não se atreva ainda. Conhece-me há tanto, mas por tão pouco. Não teme por se flagrar num engano?
Sua resposta foi um bruto desvio de olhar. Não me demorei e segui dobrando a esquina, notando, alguns passos depois, que ela fazia o mesmo. Após algumas quadras, adentrei num prédio antigo, dirigindo-me ao último apartamento de um corredor escuro, onde morava nos últimos sete meses. Como me era freqüente, de repente submergi em lembranças.

Era menino, sentado na cama, quando, repentinamente, abre a porta aquela menininha loira falando:
- Vamos, Fred. Estão nos esperando!
Rapidamente despertei da minha lembrança. Ela entrava discretamente, e não contendo sua emoção, disse-me:
- Pensava que nunca mais fosse vê-lo. Que estivesse morto ou não soubesse de mim.

Por Felipe Han da Costa

- Apesar de tudo, minha palavra ainda vale alguma coisa, não é?
- Sim, é claro... mas você sabe, as coisas mudam.
- E você, quer agora?
Então me levanto e corro atrás dela. Como pude dormir tanto em um dia tão importante?
A grama do sítio fora cortada recentemente, a chuva da noite anterior dava um cheiro de terra molhada, que jamais esqueceria, que sempre vincularei a Júlia. Sigo nossa trilha, passo pelas palmeiras, então a vejo.
- É cedo. Me conte como vai o velho.
- Teimoso, como sempre. Está aposentado, mas esses militares são muito estranhos, sempre fugindo de alguma coisa.
- Quando voltou para o Brasil?
- Há poucos dias, minha idéia era voltar antes, mas a vida na pequena ilha estava muito boa, apesar das dificuldades.
- Por que não me procurou antes? Pensei em você todos os dias da minha vida. – apesar de estar há mais de vinte anos sem vê-la, parecia exatamente igual à figura em meus sonhos.
- É muito complicado, mamãe não queria, não deixava. Você sabia o que aconteceria. Se isso vai mudar alguma coisa, quero que saiba que lembro de tudo, cada segundo, nunca deixei de pensar nesse dia.
No alto da colina Júlia olha para o sol, que estava nascendo, e os primeiros raios de sol incidentes sobre a imensa plantação de café fazem aparecer apenas a silhueta jovem de Júlia, de braços abertos, desfrutando seus últimos momentos no sítio. Foi como se tirasse uma fotografia deste momento e guardasse para sempre. Sabia que jamais esqueceria.
- Fred, sente-se ao meu lado, feche os olhos e se esqueça de tudo.
Os breves segundos que passei lá pareciam uma eternidade, pensei que nunca acabariam e fiquei feliz por isso. Mas quando abro os olhos, Júlia não está mais lá. Corro até a casa principal e vejo Júlia sendo arrastada por mamãe para dentro do carro.
- Não leve ela embora – grito desesperadamente, em vão.
- Garoto, o governo está a procura de sua mãe, ela traiu a pátria e agora terá que sair do país e insiste em levar sua irmã.
- Fred, eu preciso ir – segura minha mão pela última vez. Desaparece.
Abro minhas mãos e vejo o que restou de Júlia: um cartão com endereço do “Café Wepler”. E desde então eu freqüento este estabelecimento todos os dias de minha vida.
- Agora é a hora ideal, Fred – corro e a abraço como nunca tive a chance de fazer. Volto a sentir o adorável cheiro de terra molhada.

Sentidos

Por Bruno Fernando Castro

Minha visão estava turva, e, mesmo assim, eu continuava. Conforme a penumbra se dissipava, as formas ganhavam contornos mais definidos e as cores ficavam nítidas. Em instantes, tudo ficou claro.
Isso não foi motivo de muita satisfação. Era um beco escuro e úmido,entre chão e paredes feitas de pedras cobertas de musgo. Olhos instintivamente para o céu na esperança de que a sua vista me revele alguma coisa, ou, ao menos, me ofereça um pouco de salubridade, a qual não encontro aqui. Expectativa em vão. Aquele cinza apenas contribuiu para meu desencanto de melhorar meu mal-estar.
Definitivamente, não era o local ideal para me inquietar sobre minha condição. Antes de tomar qualquer rumo, decido olhar ao redor. Na parte mais profunda e inóspita do beco vejo um vulto. Momentaneamente deixo de procurar uma saída, havia algo que me impelia a atentar para aquela sombra a se mover. A forma toma contornos de um homem. Agora podia discerni-lo claramente, apesar dele ainda se encontrar no canto menos iluminado. Assusto-me. Cabelos desgrenhados, casaca em frangalhos, calça desfiando. A razão diz que não é uma boa companhia em lugar como aquele. Meu coração palpita. Sua expressão, doentia e maquiavélica é um golpe contra mim. Mas ele me ignora. Parece-lhe que nem estou ali. Preocupa-se apenas em colocar uma pedra do calçamento de volta em seu lugar. Certifica-se da planura dela em relação ao chão. Agachado, olha em volta. Seu olhar me paralisa. Parece querer se resguardar de alguém. Quanto a mim, não lhe causo preocupação.
Ouço uma campainha, seu som é nítido, mas ao homem interessa-lhe apenas a saída. Seu olhar, menos maquiavélico, mas ainda doentio, perturba por me ignorar. Algo esbarra em meu ombro. Distraio-me, mas não procuro saber o quê. Porém, fora tempo suficiente para aquele homem sair do beco sem me notar, e nem eu atentar para onde seguiu.
A força que me incitou tantas outras vezes se apresentava novamente como um murmúrio. Intuitivamente sabia o caminho que ele seguiu, sem nem saber ao certo onde eu estava, e magneticamente não pude deixar de seguir a trilha imaginária. Ademais, não seria difícil encontrá-lo: aquela casaca em frangalhos num corpo alto e esguio, com uma cabeça grande e farta de um cabelo negro todo revolto, fazendo parecer-lhe a cabeça ainda maior, estava nítida em minha memória.
Fora do beco, eu sabia o caminho que deveria seguir para encontrá-lo. Estava na calçada esperando uma carruagem passar. Atravessaria a rua e seguiria pela ponte assim que o veículo permitisse. Não o via, mas já sabia onde se encontrava. Ouço um ronco muito forte. Uma carruagem não produz tão forte som, eu penso. Sigo ignorando-o.
Ao atravessar a ponte me aproximo do meu destino, do dele. Cruzo um pequeno aglomerado de pessoas ao redor de três tocadores de realejo. Nada pude escutar de suas músicas, apenas muitos murmúrios incompreensíveis. Eram palavras soltas e sem sentido: “supermercado”, “e-mail”, “greve”, “eleição”. Eleição?! Não iria me deter ali para tentar decifra-las, o local estava próximo. Tanto que, à porta de onde, presumivelmente, estava o homem do beco, ainda podia ouvi-las com a mesma intensidade.
Na quadra anterior ao meu destino, um sinal dos tempos. Alguns desempregados que não tinham onde morar, nem o que comer, dividiam garrafas de uma bebida forte. Estão em meu caminho, tenho que passar ao lado deles. Nem notam minha presença. Passo tão perto a ponto de poder sentir o odor típico de moradores de rua embriagados. É um cheiro incoerente com que presumira sentir, apesar de ainda ser desagradável. Era algo como uma mistura indigesta de perfume barato com suor de um dia inteiro de baixo do sol escaldante de verão. Mas estava frio. Aqueles pobres diabos bebiam para fugir da razão, enganar a fome e afastar o frio. Suas vestes e estado físico eram piores que a do homem que eu perseguia. O lastimoso pano que os envolvia era portador de incontáveis morbidezes e porta-voz de todos infelizes percalços enfrentados em suas vidas. Não seria tão estranho encontrar por aqui aquele homem que procuro. Mas sabia que ele não estaria aqui.
O caminho me levou a uma taverna. Lá estava eu, a uma porta de encontrá-lo. Ansioso. Afinal, já era seu simpatizante e havia uma certa identificação com ele. A mesma voz que me impeliu todo esse caminho presumia que eu já o conhecia. Aproximo-me da porta. Era uma tasca de aspecto tão insalubre quanto o beco. Ouço música. Era um som muito estranho, com arranjos fortes e simples. Ensurdecedor. Umas vozes estranhas seguiam a melodia. Perguntava-me que diabos de instrumentos produziriam tal coisa. Ponho a mão na maçaneta. Um ganido estridente e alongado seguido de vaias de praguejamentos. Neste instante, sinto meu corpo ir para frente e, num golpe violento, voltar para trás. Ignoro. O girar da maçaneta provoca estalos incomuns e maiores que o pressuposto. Outro ronco. Dessa vez conheço a procedência, é meu estômago. Os estalos continuam mesmo depois da porta já aberta. Ao entrar, antes mesmo de distinguir qualquer coisa no salão, sou acometido por um cheiro avassalador. Minha vista escurece. Tudo está turvo, como no beco. Ainda desorientado, minha visão se reestabiliza. Não estou mais no que seria o salão da taverna, mas aquela poderosa fragrância era a mesma. Não. Era ainda mais intensa. Uma mão em meu ombro é o sinal. Sentado em um banco, uma mulher me pede passagem para se sentar ao meu lado. Levava um saco de pão fresquinho ao qual não pude resistir, nem minha leitura.

Expectativas com Estudos de Mídia

Por André Santos

Meu interesse pelo curso surgiu de uma combinação que, com certeza, é compartilhada pela maioria dos meus colegas: interesse pela área de comunicação, baixa concorrência no vestibular e uma imensa vontade de apostar numa proposta inovadora. As coisas nunca acontecem como idealizamos, seja de forma negativa, positiva ou até mesmo um meio-termo (como nesse caso).
Primeiramente, a liberdade de escolha em relação à grade de matérias é atraente porém preocupante. A idéia consiste em direcionar o curso para alguma das áreas temáticas de optativas; contudo, na prática, isso se torna inviável (pelo menos por enquanto). O fato de ser um curso novo implica diversas dificuldades e, a meu ver, a principal delas está na falta de objetividade. Ou seja, tenho um leque enorme de possibilidades, entretanto não enxergo forma viável de concretizar a minha grade especificamente em alguma área de atuação. Além disso, o fato do curso ser essencialmente teórico gera um questionamento muito forte: será que estarei realmente apto para analisar a mídia como um todo, quase sem vivenciá-la na prática durante a faculdade? Não considero que as eletivas sejam o suficiente.
Em contrapartida, vejo nitidamente a seriedade do departamento. A maioria dos professores demonstra enorme potencial em amadurecer a proposta do curso, e a relação entre aluno e departamento é muito próxima. Porém, tenho a sensação de que todos os professores (por mais que tentem não transparecer) possuem o mesmo questionamento básico que eu: não tem idéia de como será realmente a atuação do profissional formado em Estudos de Mídia. Claro que ainda é cedo para certezas, por sermos percursores. Muito do futuro profissional da pessoa formada em Mídia depende dos caminhos que serão abertos pelos primeiros alunos e da conscientização da necessidade por parte do mercado.
Vejo, de forma preocupante, também a enorme distância que existe entre os cursos de Comunicação Social e EM. Acho que o principal motivo está no fato da criação do curso ter tido origem após anos de brigas de departamento e divergências ideológicas. Não me cabe julgar quem estava certo ou errado, no entanto considero que existe potencial para uma troca fantástica. Um curso complementa o outro pelos diferentes focos e abordagens, mas a interação deixa a desejar.
Em suma, enxergo o curso como uma aposta interessante, porém cercada de incógnitas. A proposta é ousada e inovadora, além de estratégica, no entanto o curso se apresenta muito vago. Dessa subjetividade nasce uma enorme angústia. Também nasce a esperança de me deparar com um caminho mais definido, mais maduro com o passar do tempo. E aí então, finalmente, entender o que fará realmente o profissional formado em Estudos de Mídia.

Paixões

Por Ana Carolina Bull

Tudo começou bem simples. Um “oi” meio sem graça. “Tudo bem?” E essas coisas. A iniciativa partiu de mim, claro. Ele não era de falar muito. Mas eu sabia que ele sentia o mesmo. Dava pra ver no seu olhar.
Passavámos muito tempo juntos. Foram mais ou menos 10 anos. Eu me apaixonava e reapaixonava a cada dia. Ele era o primeiro que eu via ao acordar e o último que eu olhava ao me deitar. Na verdade, às vezes eu fingia dormir só para ele dormir. Então eu abria meus olhos e ficava observando-o enquanto dormia. Ele era mais lindo ainda dormindo.
Sinto muita falta dele, principalmente quando chego em casa. Era a melhor hora do dia para mim. Ele me esperava na porta, depois me seguia por toda casa. Quando eu sentava no sofá, ele se sentava ao meu lado e lá ficávamos, em silencio, comemorando o fato de podermos passar aquele tempo juntos, um ao lado do outro, assistindo à novela. Jantávamos e íamos para a cama. Era assim todos os dias.
Eu me lembro do dia em que ficou doente. Estávamos no parque. Corríamos. Ele à pé, eu de patins. Um lindo dia de primavera. A grama, a mais verde e viva que eu já tinha visto na vida. As flores, as árvores, o sol... tudo perfeito. Parecia um sonho. Ele corria atrás de mim, quando tropeçou e caiu. Corri até onde ele estava. Parecia que sentia muita dor. Fomos até o carro e corremos para o hospital. Os cinco minutos que passei sentada no corredor da emergência pareceram cinco horas. No final, ele voltou com um pé engessado. Mas eu sabia, sentia a dor dele.
E ele foi piorando. O pé não se curou, então voltamos ao médico. “Problemas nos ossos”, ele disse. Meu querido ficava pior a cada dia. Eu deveria saber que isto iria acontecer. Afinal, quando nos conhecemos ele já não era tão jovem quanto eu gostaria. No fim das contas, acho que isso foi que mais me atraiu nele.
Então o tempo foi passando, ele piorando. O pé nunca se curou direito, e ele tinha dificuldade em andar e ainda mais em se levantar. Passei a dedicar mais tempo a ele. Quando estava muito mal, eu o colocava na cama e ficava fazendo carinho nele. Isso não aliviava sua dor, mas o fazia feliz por alguns instantes. E ele sorria pra mim, de um jeito que me fazia esquecer o resto do mundo e querer passar o resto da minha vida naquela cama, naquela companhia. Eu desejava que aquele instante fosse eterno.
Até que ele se foi. Um outro lindo dia de primavera em que ele foi cremado e eu joguei suas cinzas no mesmo parque em que tudo começou. Eu sabia que era o lugar de que mais gostava.
Ele partiu cedo. Mas nunca irei esquecê-lo. Ele foi o primeiro que me amou intensamente sem me julgar e sem me comparar com outras. Foi amor à primeira vista. Sua presença me faz muita falta, mas o fim de seu sofrimento foi um alívio para mim. Sempre irei amá-lo, por mais que apareçam outros na minha vida. Meu lindo e velho Spyke. Meu primeiro cachorrinho.

Escrever

Por Carla de Paula

A minha experiência com a escrita me faz pensar nessa atividade como um processo. Há fases que precisam ser cumpridas, bem como nos motiva o que sabemos estar reservado a cada uma delas.
Uma tarefa, com princípio, meio e fim. Afim apenas de satisfazer – com sucesso ou não – o ego daquele que escreve. Aproximando-me do que escreveu Sontag, percebo o ego como o que é sempre presente e a quem driblamos apenas quando nos desfazemos da responsabilidade de avaliação da nossa própria criação.
O ego só é suspenso nos momentos de contato com outros autores. Quando escrevo, ainda que opte pelo desconhecimento dos demais, é pensado sob a ótica do outro. Um autor não pode negar a vaidade que motiva sua atividade. Certamente mantive em sigilo ou mesmo desfiz do que meu excesso de autocrítica julgou ruim. E é incrível como o momento se faz crucial nessa categorização. Há textos em que me escapa o reconhecimento da autoria. Parecem de outra. Na verdade, isso me faz entender o ato da escrita, no meu caso particular, como algo isolado. Há uma deliberação naquele momento, uma impulsividade criativa e uma percepção que se faz pertinente àquele momento apenas.
Acredito que sejamos múltiplos no ato da escrita. Uma única pessoa, com apreensões diversas do que há.
A fase de exteriorização é um tanto laboral; árdua. Como já ouvi de alguém certa vez, não há inspiração, mas transpiração. Apesar de ter uma clareza bem grande sobre o que trata o texto, no instante da transcrição me escapa a objetividade. Tudo está muito bem relacionado no meu entendimento, mas, numa leitura posterior, percebo que o elemento conector das idéias não foi retratado. O que confunde o entendimento do leitor.
É certo que há elementos de ordem pessoal no que escrevo. Mas escrever é o reino do “como se”. A ficção te permite estabelecer com o mundo uma relação que não ousaria fora das páginas de um livro. Meus gostos estão bastante presentes nos contos. Através das personagens imaginadas, materializo um mundo de aspirações e, principalmente, frustrações. Mas isso se reserva ao final do processo, quando se acredita, se for mesmo possível, ter concluído a narrativa. E como pode ser angustiante esse caminho. Contar uma imagem, uma sensação. Tudo tão desafiador quanto gratificante se feito com precisão. Eu releio muito tudo que escrevo. Preciso desse contato com o texto. Revisar, aprimorar, substituir a fim de que tome a dimensão desejada à cena. É de fato um trabalho estafante, que tende a ser recompensado com a leitura. Penso no prazer como o que está reservado a esta fase. Leitura é prazer, enquanto cabe às infindáveis fases de escrita e reescrita, intercaladas por leitura e releitura, um intenso exercício; a angústia de extrair o termo mais adequado para o que se imagina e que esteja mais próximo de atingir a satisfação do ego.
A leitura em voz alta, na minha opinião quebra com toda uma lógica de introspecção aplicada ao momento da escrita. A existência do auditivo altera o ritmo pensado para a narrativa. Voz é acessório da oratória e esta instrumento de intimidação. Penso ser tão determinante a impostação da voz, ditando o ritmo da leitura, que me parece restar pouco à criatividade do ouvinte – que, portanto, deixou de ser leitor.

Zero Dois

Por Flavia Risi

02. E o cheiro ainda era forte. Há uma semana tinham todos os rostos inchados e vermelhos. Abraços e mais abraços. Pessoas que, brigadas, não se falavam há mais de ano, há uma semana estavam de mãos dadas rezando em uníssono. Meia dúzia fofocava, todos olhavam desconfiados e, como que em pacto velado, sussurravam. Até parece que morto escuta!!!
Sim, este foi o primeiro enterro a que sobrevivi. Primeira vez que via um cadáver ao vivo. Primeira vez que me senti mais forte do que minha mãe e, o pior de tudo, primeira vez que o cheiro de cravos enjoava meu estômago.
Quinze de novembro. Bem no feriado. Todos podiam ir, e foram; menos o padre, que não foi trabalhar ou não quis atender ao telefone. Tivemos que improvisar com um pastor da eucaristia, se não estou enganada... Não entendo muito bem destas divisões... Mas mesmo não concordando com as coisas que ele dizia, diante do silêncio antecedido pelo pedido de participação, li um trecho que pregava: “Jesus é o caminho, é a verdade, é a vida”. Acho que nunca vou esquecer disso.
O caixão era grande. Ela morreu na terça. Neste dia mesmo, a vi repousada dentro de uma caixa de madeira (como é mórbida a palavra caixão e como é impactante ver alguém ali dentro). Do lado de fora da sala tinha medo de olhá-la. Havia uma mulher ornamentando-a com flores e não podia entender como alguém consegue tamanho desprendimento estomacal.
De relance. Um misto de dever e curiosidade me fez olhar para o lado. Eu vi a mão e o nariz. A curiosidade falou mais alto e subi um degrau. Já podia ver a testa, as mãos e o nariz com precisão e as flores. O cheiro de cravo foi como um soco no estômago. Faltavam dois degraus. Como se um vento forte me fizesse resistência, fui aos poucos entrando. AS MÃOS!!!!! Estavam inchadas e brancas. Demasiado brancas. Evitei olhá-las. As pálpebras ainda estavam vermelhas, parecia que poderiam abrir a qualquer momento. Por vezes, inclusive, tive a sensação de ver o tórax e a barriga se encherem de ar. O cheiro e a visão do corpo não permitiram que ficasse ali por muito tempo.
Parecia não ser verdade que minha vó tivesse morrido. Desde que me entendo ouço-a dizer que ia morrer logo, que não duraria. E isso já fazia no mínimo doze anos. Um problema crônico pulmonar fazia com que ela fosse internada freqüentemente. Ela sempre voltava. Eu achei que repetiria. Mas não. Insuficiência respiratória. Os brônquios não tinham força para expelir as secreções, que, alojadas no pulmão, causam inflamações. Duas semanas em coma e vinte e dois tipos de antibióticos testados. Nada segurou os 31 mil leucócitos que subiram aceleradamente.
Roupas, um sapato, um terço e um documento. Cemitério do Catumbi, 15 de novembro. Chegamos lá às dez horas. O enterro estava marcado para as três. As pálpebras já estavam na cor das mãos. Ela definitivamente não abriria os olhos. Também não vi mais o tórax e a barriga se mexerem. O cheiro estava mais forte.
Meu pai apareceu, mesmo separado da minha mãe. Talvez tenha ido mais pelo meu tio que por ela. Quase todos da família foram e Juliana não deu descaso à máquina de coca-cola. Light, claro. Eu tomei uma vitamina de banana na esquina, lugar que descobri (depois de beber) que a chinesa lavava todos os copos em uma mesma bacia com sabão. Água suja com sabão e banana. Se não morri aquele dia, não morro mais.
Três e quinze e o pastor acabou. Faltava fechar o caixão. Decidi não olhar. Apenas abracei minha mãe.
Um buraco mais raso do que eu imaginava, ou melhor, que dos filmes americanos. Talvez fosse até a altura dos meus joelhos, não lembro muito bem. Alguns homens cobriram-na com duas “tábuas” de cimento duro. Discretamente via-se: 02. Alguns matinhos cresciam por ali e o cimento fresco usado para lacrar a sepultura respingou, dificultando a leitura. Ela está entre a 01 e a 03, o que traz a certeza de ser um 2.
Primeiro enterro. Memórias de um amadurecimento e de um luto.
O cheiro dela ainda é forte no apartamento. As roupas e quinquilharias ocupam um espaço já vazio. A bermuda pendurada na porta traz a sensação da rotina.
02 e mesmo assim o cheiro ainda é forte. Talvez um dia passe. Deixe o amanhã dizer.