4 de jun. de 2007

Algum lugar de Istambul

Por Flavia Risi

Primavera. 20 de maio. Algum lugar de Istambul.

Já faz 13 dias que eu estou aqui. Não sei ao certo onde. Apenas sei que meus joelhos doem. Ainda não sei por que me trouxeram para cá. Era noite quando eles chegaram, e mal deu tempo de esconder o pequeno Yussef. Como será que ele está?
Com armas em punho e rostos cobertos arrombaram minha porta. A parede, feita de barro, não suportou. Pude ouvir os farelos cederem e deslizarem junto à porta.
Mesmo sem reagir, apanhei. Torceram-me um dos joelhos para que não pudesse correr. Mesmo assim não senti dor. Meus sentidos todos estavam em Yussef. Já caída e sangrando, pude me concentrar apenas nas botas. Vi apenas uma caminhar pela sala. As outras duas se mantinham sobre mim. Quem quer que fosse sabia o que queria. Desmontou com uma chave os fundos da TV, e logo em seguida a jogou no chão: - Droga!
Irritados, me levaram para uma picape. Sob a noite, apenas as estrelas percorriam meus olhos, felizes pela segurança do pequeno.


Primavera. 3 de junho. Ainda em algum lugar de Istambul.

27 dias. Faz tempo que não vejo o sol. A claridade me faz saber do dia e da noite. Ainda não choveu.
Meu joelho está com uma cor diferente. Já não sinto a dor que sentia. A papa que me dão de comida traz às minhas fezes um odor terrível. Estou ficando sem espaço e com dificuldades de me mexer. A rótula do joelho bom me parece maior. Acho que emagreci.
Apenas continuo vendo as botas. Não sei de Yussef ou Rarib. Não sei o que me procuram ou esperam. Só o que ouvi é que estou em algum lugar de Istambul.


Primavera. 7 de junho.

31 dias. Meu joelho está latejando. Tenho implorado por ajuda. Estou com medo de perder a perna. Há dois dias não bebo água.
Eles pedem que eu desenhe o mapa de onde está.
Onde está o quê?
Ameaçaram cortar também a comida.


Não sei se já é verão. 23 de junho.

47 dias. Há dez dias eles vêm alternando, dia-sim, dia-não, o prato de comida.
Hoje ouvi a voz de Rarib suplicando por algo. Arrastei-me até a porta e lhe colei o rosto. Não consegui ouvir mais nada. Gritei por socorro, o chamei, esmurrei já sem forças a porta. Inútil.
A ponta dos meus dedos do pé começava a ficar enegrecida.
Queria poder saber de Yussef. Queria abraçá-lo e protegê-lo.


30 de junho.

Tenho febre. Não tenho certeza da realidade. Pareceu-me ter ouvido um tumulto.
Um tiro! E a porta se abriu pela primeira vez em 54 dias.



Por Viviane Roux*


Faço forca para abrir os olhos, delírios febris se misturam com o que parece ser real. Meu corpo treme de frio, minha cabeça parece querer fugir dali, me esforço para que fique.
Perco os sentidos.


7 de julho.

Passei a última semana indo e voltando de um sono profundo. Lembro de um homem alto, másculo, com o rosto coberto por um pano preto e imundo, me sacudindo pelos braços.
Lembro de chamar por Yussef, de vê-lo brincando no gramado verde dos jardins. Outro homem, não vejo seu rosto, só ouço sua voz grave. Discutem em uma língua que não conheço. Vejo Yussef, adormeço de novo.


11 de julho.

Estou acordada há três dias, a dor me mantém alerta. Chego a gostar dela, me faz sentir viva.
Passo o tempo cantando velhas canções de ninar, não trazem mais comida, não ouço nada, fui esquecida nesse buraco.

Quando fecho os olhos, vejo minha casa, minha família, um prato quente e água fresca.
Explosão. Bomba. Tão perto, medo. O que será?

Sinto a dor aumentar, não vou resistir.


20 de julho.

Abro os olhos. É tudo branco. Sinto cheiro de álcool e a claridade é tanta que demoro a me acostumar com ela.
Se existe paraíso, ele é claro e silencioso como onde estou agora.
Alguém se aproxima. Quem será?


23 de julho.

Sinto uma mão quente segurar na minha. Yussef. Vejo Rarib atrás dele e seu sorriso calmo, há uma cicatriz em seu rosto, mas ele me parece bem.
Não sinto a perna direita, tento me mexer mas sou impedida por Rarib que sussurra em meu ouvido: “Agora está tudo bem”.
Meus olhos se enchem de lágrimas.


Verão. 25 de julho.

Já consigo sentar e uma mocinha de branco coloca lentamente uma fruta incrivelmente doce na minha boca.
Tenho a certeza de que acabou.
Muitas perguntas a fazer, mas Rarib se recusa a dar respostas, talvez porque nem ele as saiba.
Estou tranqüila.
Quero voltar para casa.

Nenhum comentário: