4 de jun. de 2007

Sentidos

Por Bruno Fernando Castro

Minha visão estava turva, e, mesmo assim, eu continuava. Conforme a penumbra se dissipava, as formas ganhavam contornos mais definidos e as cores ficavam nítidas. Em instantes, tudo ficou claro.
Isso não foi motivo de muita satisfação. Era um beco escuro e úmido,entre chão e paredes feitas de pedras cobertas de musgo. Olhos instintivamente para o céu na esperança de que a sua vista me revele alguma coisa, ou, ao menos, me ofereça um pouco de salubridade, a qual não encontro aqui. Expectativa em vão. Aquele cinza apenas contribuiu para meu desencanto de melhorar meu mal-estar.
Definitivamente, não era o local ideal para me inquietar sobre minha condição. Antes de tomar qualquer rumo, decido olhar ao redor. Na parte mais profunda e inóspita do beco vejo um vulto. Momentaneamente deixo de procurar uma saída, havia algo que me impelia a atentar para aquela sombra a se mover. A forma toma contornos de um homem. Agora podia discerni-lo claramente, apesar dele ainda se encontrar no canto menos iluminado. Assusto-me. Cabelos desgrenhados, casaca em frangalhos, calça desfiando. A razão diz que não é uma boa companhia em lugar como aquele. Meu coração palpita. Sua expressão, doentia e maquiavélica é um golpe contra mim. Mas ele me ignora. Parece-lhe que nem estou ali. Preocupa-se apenas em colocar uma pedra do calçamento de volta em seu lugar. Certifica-se da planura dela em relação ao chão. Agachado, olha em volta. Seu olhar me paralisa. Parece querer se resguardar de alguém. Quanto a mim, não lhe causo preocupação.
Ouço uma campainha, seu som é nítido, mas ao homem interessa-lhe apenas a saída. Seu olhar, menos maquiavélico, mas ainda doentio, perturba por me ignorar. Algo esbarra em meu ombro. Distraio-me, mas não procuro saber o quê. Porém, fora tempo suficiente para aquele homem sair do beco sem me notar, e nem eu atentar para onde seguiu.
A força que me incitou tantas outras vezes se apresentava novamente como um murmúrio. Intuitivamente sabia o caminho que ele seguiu, sem nem saber ao certo onde eu estava, e magneticamente não pude deixar de seguir a trilha imaginária. Ademais, não seria difícil encontrá-lo: aquela casaca em frangalhos num corpo alto e esguio, com uma cabeça grande e farta de um cabelo negro todo revolto, fazendo parecer-lhe a cabeça ainda maior, estava nítida em minha memória.
Fora do beco, eu sabia o caminho que deveria seguir para encontrá-lo. Estava na calçada esperando uma carruagem passar. Atravessaria a rua e seguiria pela ponte assim que o veículo permitisse. Não o via, mas já sabia onde se encontrava. Ouço um ronco muito forte. Uma carruagem não produz tão forte som, eu penso. Sigo ignorando-o.
Ao atravessar a ponte me aproximo do meu destino, do dele. Cruzo um pequeno aglomerado de pessoas ao redor de três tocadores de realejo. Nada pude escutar de suas músicas, apenas muitos murmúrios incompreensíveis. Eram palavras soltas e sem sentido: “supermercado”, “e-mail”, “greve”, “eleição”. Eleição?! Não iria me deter ali para tentar decifra-las, o local estava próximo. Tanto que, à porta de onde, presumivelmente, estava o homem do beco, ainda podia ouvi-las com a mesma intensidade.
Na quadra anterior ao meu destino, um sinal dos tempos. Alguns desempregados que não tinham onde morar, nem o que comer, dividiam garrafas de uma bebida forte. Estão em meu caminho, tenho que passar ao lado deles. Nem notam minha presença. Passo tão perto a ponto de poder sentir o odor típico de moradores de rua embriagados. É um cheiro incoerente com que presumira sentir, apesar de ainda ser desagradável. Era algo como uma mistura indigesta de perfume barato com suor de um dia inteiro de baixo do sol escaldante de verão. Mas estava frio. Aqueles pobres diabos bebiam para fugir da razão, enganar a fome e afastar o frio. Suas vestes e estado físico eram piores que a do homem que eu perseguia. O lastimoso pano que os envolvia era portador de incontáveis morbidezes e porta-voz de todos infelizes percalços enfrentados em suas vidas. Não seria tão estranho encontrar por aqui aquele homem que procuro. Mas sabia que ele não estaria aqui.
O caminho me levou a uma taverna. Lá estava eu, a uma porta de encontrá-lo. Ansioso. Afinal, já era seu simpatizante e havia uma certa identificação com ele. A mesma voz que me impeliu todo esse caminho presumia que eu já o conhecia. Aproximo-me da porta. Era uma tasca de aspecto tão insalubre quanto o beco. Ouço música. Era um som muito estranho, com arranjos fortes e simples. Ensurdecedor. Umas vozes estranhas seguiam a melodia. Perguntava-me que diabos de instrumentos produziriam tal coisa. Ponho a mão na maçaneta. Um ganido estridente e alongado seguido de vaias de praguejamentos. Neste instante, sinto meu corpo ir para frente e, num golpe violento, voltar para trás. Ignoro. O girar da maçaneta provoca estalos incomuns e maiores que o pressuposto. Outro ronco. Dessa vez conheço a procedência, é meu estômago. Os estalos continuam mesmo depois da porta já aberta. Ao entrar, antes mesmo de distinguir qualquer coisa no salão, sou acometido por um cheiro avassalador. Minha vista escurece. Tudo está turvo, como no beco. Ainda desorientado, minha visão se reestabiliza. Não estou mais no que seria o salão da taverna, mas aquela poderosa fragrância era a mesma. Não. Era ainda mais intensa. Uma mão em meu ombro é o sinal. Sentado em um banco, uma mulher me pede passagem para se sentar ao meu lado. Levava um saco de pão fresquinho ao qual não pude resistir, nem minha leitura.

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