4 de jun. de 2007

Diário de Júlia

Por Flavia Risi

NITERÓI, 20 SETEMBRO DE 2000


Há muito já não escrevo. Há muito já não me escrevo. Quando foi que perdi o hábito? Costumava lhe contar tudo o que vivia, tudo o que experimentava. Lembro até hoje, e rio quando volto suas páginas e releio, meu primeiro beijo... Era tão criança... Será que ainda sou? Aquela expectativa, ele pulando a janela do meu quarto, olhares curiosos e ansiosos... Nada além de um beijo. Era para isso que estávamos lá e tinha que ser resolvido. Ninguém conseguiu ou quis falar nada. O beijo, que sensação estranha outro gosto na minha boca! Mal pude esperar para, correndo em desespero, escovar os dentes... A primeira presença física do outro em mim. Estranha a ponto de querer me livrar efemeramente.
Hoje me vejo em vontades opostas. Como queria sentir o gosto do beijo. O afago do beijo. A completude inquietante do beijo. A memória confortante daquele beijo.
Este não é o primeiro beijo. Nem o segundo, muito menos terceiro. Quinze anos já se passaram do episódio da escova de dentes, o que fez tranqüilamente com que perdesse a conta dos beijos, mas se pudesse escolher, diria que é o primeiro.
É a primeira paixão fumegante. Dessas que tira qualquer dúvida. O único desejo, há cinco anos, é o seu gosto, a sua existência. A existência dessa paixão e, do fogo. Porque paixão sem fogo é amor e, amor somente eu não quero. Quero viver o conflito de ser eu e o outro ao mesmo tempo. Quero viver a cada momento, aquele encantamento despropositado. E acima de tudo, quero sentir o choque de ter tua pele sob a minha.


Porém, ontem, tivemos nossa primeira ausência.


NITERÓI, 19 SETEMBRO DE 2000

Hoje eu completei 27 anos. Meu aniversário. A segunda data de que mais gosto (depois do Natal). Mil telefonemas, aquele blá, blá, blá, que eu adoro. Mas o melhor de tudo, o momento mais esperado, era a surpresa que ele me faz. Há cinco anos em cada aniversário, uma surpresa digna própria de paixão. E como vivia isso intensamente. Mal cabia em mim a vontade de estar no outro. E mais um ano, foi o que esperei.
Logo ao amanhecer, nada. Nenhum telefonema, mensagem ou sinal de fumaça. Confiei que fazia parte da surpresa. Ansiosa, esperei. O que me restava fazer... Horas passavam ... Os minutos e os segundos ... Eternidade. Como posso eu viver assim, tão loucamente apaixonada?
Hora de trabalhar. Atrasada, correndo e ansiosa, corri para o carro. Nem me lembro se cumprimentei seu Jorge na portaria.
O relógio marcou meio-dia. Fazia duas horas que havia chegado na empresa e assim meu coração não dava sossego. Desejava dormir até a hora dele chegar.
Hoje não se completavam apenas 27 anos. Completamos também cinco anos de casados e seis anos do primeiro beijo.


- Ahhhhhhhh! Três horas da tarde! – Gritei de repente ... O que fez com que a metade do pessoal do jornal olhasse para mim.


Decidi que ele havia esquecido. Como podia ter sido tão estúpida em achar que teria uma surpresa? Será que cinco anos é tempo suficiente para que isto deixe de ser prazerosamente importante? Inconscientemente fundamental? Talvez ele pense que estamos tão juntos que não é preciso reforçar esse sentimento ...
Quem disse que eu queria reforçar? Quero celebrar minha paixão. Quero dividir minha alma.

Mas não foi exatamente assim.

Seis horas sai da redação. Fui para casa sem destino e sem ilusão. Havia passado o dia esperando, e por incrível que pareça, me senti surpresa quando seu Jorge me chamou.
- Dona Julia, tem um envelope para a Sra. Tentei entregá-lo pela manhã, Mas a Sra. saiu com muita pressa ...
Perplexa, feliz, ansiosa, fugaz e apaixonada, subi. Mal tive tempo e consciência de agradecer.

Estava resolvido. Quando eu chegasse em casa, ele já teria voltado e aquele bilhete, que em cima da mesa povoou a manhã (onde me dizia que havia saído mais cedo para trabalhar), faria parte da surpresa.
Quase como se tivesse recuperado a respiração eu me senti viva novamente.
Vinte e quatro andares, um minuto dentro do elevador. Por que eu resolvi morar tão alto?
O minuto mais longo do dia fez par aos segundos que levei para achar a chave e entrar na sala.
Nem um minuto, nem um segundo. Nem um barulho. Nem um amor, nenhuma paixão.
Nem uma festa, nem um abraço.
Eu, a sala, o silêncio da ausência e a carta. Ah! A carta. Por um momento havia esquecido ...


NITERÓI, 19 SETEMBRO DE 2000

Júlia, meu amor,


Mal sei como escrever, as palavras me fogem, assim como as letras que, apavoradas com minhas idéias, se recusam a vir facilmente. Não há outro jeito. Não sei se algum dia vou poder olhar novamente nos seus olhos velados de verdade, onde só reconheceria meu erro, e por isso, somente por isso, vou embora.
O que fiz não é justo com teu amor. Com nossa paixão.
Quem sabe assim, com as palavras foragidas, e na ausência da explicação a raiva de mim não consuma sua alma, que de nós foi parceira e amante?
Digo-lhe que, te conhecendo, sei que não teria perdão, e que assim, covardemente, não poderia lhe dizer.
Quão estúpido é o amor e quão profano é o desejo?
Quão estúpido se torna o amor, depois que a paixão sorrateiramente nos abandona, e que assim, por ser tão discreto este abandono nos engana ...


Seu Pablo



E assim, na sala, no silêncio da ausência li e reli, sem acreditar, em nenhuma das vezes, que era verdade. Eu quero acordar! Por favor!
Mas não. Não só não acordei, como não dormi. Naquela sala fiquei, e recordei o meu primeiro beijo. Como que criança, meu diário busquei. E agora, já dia vinte, me perco em suas folhas, imersas de amor e refúgio contra ausência inodora.
Até quando posso ficar aqui? Não sei. O que sinto é que, enquanto escrever, converso, senão comigo, com o outro que ainda mora em mim.
Já são onze horas do dia vinte, desiludida paro. E indignada, pois como pode alguém levar metade de minha preciosa alma? Que lhe dediquei com tanto afinco. Desesperança, desilusão, despreparo e “des razão”. Começo a sentir tudo novamente.

Nenhum comentário: