4 de jun. de 2007

Encontro Marcado

Por Buno Fernando

Quem nunca ouviu aquela expressão inspirada em um epicurismo afobado? Eu vivia atormentado por obrigações travestidas de conselhos. Pouca coisa que estivesse além do primeiro caderno em meu jornal era digno de minha atenção. Vez ou outra, buscava alguma notícia que me atraísse. Porém, tudo do meu gosto circunscrito. E mesmo assim, todo dia era um conselho diferente que eu ouvia. Se saía pela manhã, no mínimo três “recomendações para a vida” eu recebia. De minha vizinha de porta, D. Josefa, a advertência vinha de uma das inúmeras revistas semanais que ela colecionava. Não bastava comprar apenas uma; cada editora publicava o seu periódico de tal maneira a não se imitarem. Dizia D. Josefa: “Nesta, as receitas de doces são as melhores, mas não espere por fofocas quentes. Se as quiser, veja aquela outra, que não tem receitas muito boas, mas os moldes de ponto-de-cruz são divinos”. Ela uma especialista. Deveria ser ombudsman. Cada dia da semana era reservado ao destrinchamento de uma edição. E sempre que eu saía para o trabalho, uma nova pérola. “Faça isso”. “Seja isso”. Odiava aqueles imperativos. Como bom trabalhador, suporto-os apenas quando são de meu superior.
Minha mão ainda estava na maçaneta. Pensando sobre a previsibilidade da próxima cena de minha vida, me questionava: “Por que a D. Josefa não reclama de seu marido diabético que assalta o açucareiro pela madrugada?” Seria assim: “Bom dia, D. Josefa, tudo bem? E o Sr. Pasmado?”, para o que responderia: “Tudo bem, meu filho! Não é que ele atacou novamente o pote de açúcar enquanto eu fui ao jornaleiro. O médico já falou que a perna dele corre o risco de gangrenar. Mas não adianta, por mais...”, e por aí seguiria. Não tenho dúvida. Sou uma pessoa muito paciente. Se fosse preciso sairia meia hora antes, caso minha conversa matinal com a D. Josefa fosse sobre saúde. Realmente, saúde é um dos grandes problemas da 3ª idade. Talvez por isso, quando chegamos a ela, nosso papo assuma nuanças um tanto hipocondríacas. Quem me dera dialogássemos sobre pressão alta, osteoporose, artrite, todas essas doenças que ameaçam velhinhos. Mas eu sabia que após a troca de bom dia, ela me contemplaria com o pensamento do dia. Maldita seção em periódicos! Por que ela existe? Ou melhor: por que a lêem? O que pensam que são? Magos? Gurus? Profetas? Por que dão tanta importância ao que escrevem? Seria assim se soubessem quem as cria?
Sabia que ao passar pela portaria se daria mesma situação. Seria o porteiro Bill, nomeado de Severino por uma plaquinha em sua mesa, e seu inseparável, e indesligável, rádio-relógio. Sempre sintonizado na AM, em uma daquelas freqüências em que parece haver uma única programação, mudando apenas o locutor. Muito semelhantes aos periódicos da D. Josefa, essas estações são verdadeiras revistas radiofônicas de assuntos gerais. Enquanto no meio impresso procuramos o que queremos através das páginas, pelo rádio temos um horário determinado para cada seção da revista. Também se ofereciam conselhos nesses programas. Sem problemas para mim, ouço pouco rádio, e o meu nem possui AM, dizem que é tecnologia ultrapassada. Mas o Bill ouve. E muito.
Quando saio do elevador, passo pelo Bill. Cumprimento-o, e de praxe pergunto como vai. Concluída a formalidade da primeira etapa, ele deveria fazer um comentário sobre sua patroa. Ou sobre seu herdeiro que estourou o tampão do dedão do pé jogando bola na rua de paralelepípedos mal colocados perto de sua casa. Até mesmo uma fofoca nova sobre alguma moradora do prédio seria bem-vinda. Adoro fofoca. Mas não. O cumprimento que recebia pela manhã era o seu típico “dia”, seguido do conselho que ouvira na rádio. Já tentei sair para o trabalho bem cedo, na esperança de que aquela consultoria profética e imperativa não tivesse sido proferida. Em vão. Essas mensagens eram narradas em várias sessões, e a primeira, antes das 6:00. Nessa ocasião, acordar cedo não me serviu para escapar das palavras do “guru”, recitadas pelo Bill. Muito menos da D. Josefa pude escapar. Ela era uma velhinha muito solitária, e o ato de me presentear com algumas palavras de reflexão tinha sido incorporado a sua rotina diária. Tipicamente exótica, como com qualquer pessoa que se sinta assim.
Não poderia esquecer o terceiro personagem de minha via-crúcis diária. O faz-tudo do prédio, Joaquim Feliastério, vulgo Fred, não sei por quê. Pegava no trabalho às 7:00. Vinha do outro lado da cidade e acordava às 4:00. Apenas molhava o estômago com um pouco de café barato. Religiosamente, comprava o jornal. Aquele que o seu salário permitia. Conheço esses jornais. São muito parecidos com as revistas da D. Josefa, e os programas da rádio AM, como os que Bill ouve. Também naqueles há a seção de “conselhos grátis”, pode não ser esse nome, mas todas poderiam ser assim traduzidas. O Fred não estaria sendo lembrado se ele, também, não lesse sobre esse tema, e se ele, como os outros, não comentasse sobre eles comigo.
Sempre quando passo pelo Fred poderia ser: “Vamos lá! Me conte sobre os moleques que destruíram seu jardim. Reclame da D. Josefa, que quando manda o lixo para a lixeira, a sacola sempre está escorrendo aquele chorume e ela nem para dar um jeito”. Ledo engano. Por que acreditaria que pudesse ser diferente? Até o Fred! Dizia ele: “Olha, meu amigo, seja assim...”, “Faça as coisas desse jeito...” Ele não declarava sua fonte de inspiração, mas eu sabia sua origem. Era impossível não saber. Feliz foi o dia quando tentei escapar do Bill e da D. Josefa em vão. Feliz porque pelo menos do Fred eu escapei.
Mesmo que não encontrasse os três, eram ligações, encontros inesperados pela rua, e-mails, enfim... todos tinham conselhos para mim.
Quando, finalmente, abrisse a porta seria mais um dia assim. Entre o girar da maçaneta e o meu devaneio lamurioso, toca o telefone. Era Sonia, a minha melhor amiga do trabalho e também a maior fofoqueira de lá. Não necessariamente nessa ordem.
- Bruno?
- Oi, Sonia, pode falar...
- Você não sabe da novidade que descobri pelas bocas miúdas.
- Vamos, diga logo antes que me atrase para o trabalho.
Eu trabalhava em uma agência de notícias, e há alguns anos estava insatisfeito, desde que fui mandado para aquela área, responsável por seções em diversos jornais, revistas e programas de rádio.
- Jonas se aposentou, lembra dele? Não importa. Já tô sabendo que você sairá daquele porre de seção e assumirá a dele.
- Cê fala sério? Ou é mais uma fofoca?
- É sério, homi. Não pude resistir a te dar essa notícia logo. Você sabe que minha anteninha está sempre ligada. Você sempre briga comigo porque eu fico prestando atenção na conversa dos outros. Mas dessa vez valeu a pena, e muito. Pode confiar em mim, ouvi isso nos corredores da boca do Paulo. Soube também que ele saiu com...
Tive que interromper sua verborragia.
- Tudo bem, tudo bem. Me deixe ir. Se eu chegar atrasado não ganho o cargo.
- Ah é, é, é. Pode ir, que quando você chegar te falo sobre o que rolou na festinha da semana passada. Tinha que ter visto a Maria...
- Tchau, Sonia!
- Desculpa. Beijo e até logo.
Aquele devaneio lamurioso evanesceu. A D Josefa foi a primeira pessoa naquele dia a receber um conselho criado por mim, o qual ela ainda não tinha lido em nenhuma de suas revistas.

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