5 de dez. de 2007

Estranhos e estrangeiros

Por Gabriela Maremoto

“Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1968, numa daquelas esquinas proféticas, o filósofo Jean-Paul Sartre discursava, no auge do fervor, a favor da revolução e de uma existência mais humana. Um repentino transe de emoção com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula da tarde para me conhecer melhor.” Não se preocupou em saber o que eu teria de matar para acompanhá-la. Eu tampouco o disse, limitando-me a desligar o celular, para o qual Dora ligaria à saída do trabalho. A nódoa de culpa eu limparia depois, se preciso fosse (Paris inocenta-nos todos). Ofereci-lhe um guardanapo, apontando-lhe o canto da boca borrado de chocolate. Ela pegou o guardanapo, tirou uma caneta do bolso, desenhou nele uma boca e, enrolando-o no indicador, tocou-me, com a parte desenhada, o canto direito dos lábios. Mostrou-me o guardanapo manchado com creme de avelã e perguntou se eu fazia questão de guardá-lo, já o metendo na bolsa. Sorri.
Quando voltei do banheiro, ela já não estava à mesa. Olhei ao redor e avistei-a, através da porta de vidro, na calçada em frente, fumando e olhando para mim. Dirigi-me ao caixa para pagar a conta e o atendente informou-me que ela já havia pagado. Saí do café e parei ao seu lado, com as mãos no bolso (era, decerto, o destino menos interessante para as minhas mãos, mas eu receava me precipitar). Perguntou: “Vamos?”. Assenti com o olhar, e me pus a acompanhá-la. Duas esquinas à frente, agarrou meu braço, insinuando que sentia frio. Caminhamos assim, estrangeiros e estranhos em Paris, durante algum tempo, sem nada dizer. Indaguei, a certa altura, se o silencio a incomodava. Respondeu que no início sim, mas que, tendo de conviver com ele, acabou aprendendo a apreciá-lo - “pelo menos”, disse, “faz companhia”. É verdade, respondi, perguntando-lhe, em seguida, aonde estávamos indo. Ela parou bruscamente, olhou-me espantada, como a duvidar que eu não o soubesse. “Achei que você estivesse nos conduzindo”, ela disse. “Deixei que você nos guiasse,” respondi. Sorrimos e, naturalmente, voltamos a caminhar, estranhos e estrangeiros, pelas ruas de Paris.

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