5 de dez. de 2007

Morango Cru

Por Flavia Risi

Era suco de morango. Sim, aquela mancha era morango. Ninguém o diria não fosse o forte cheiro da fruta. Era um Miró também. Estava evidente apenas sua metade, a outra jazia na caixa, pronta à mudança. Uma caixa, em cima da mancha, um tapete e o suco de morango, era tudo o que restara dos 7 anos de casamento. A briga do dia anterior havia sido a pior. Sem rebuscamento, sem meias palavras, sem eufemismo e sem respeito. Ainda estou tentando entender como conseguimos nos ferir assim. Já passa das cinco da manhã, pelo menos é o que me diz o velho relógio da estante, pois, a julgar por mim, diria que jazia dias ali, no chão da sala que não mais minha sentia.
O tapete eu quero! Lembro-me tão bem da compra dele. O primeiro item da nossa sala. Foi no dia seguinte da festa. Resolvemos por não viajar em lua-de-mel para poder mobiliar nossa casa, e assim feito, nos perderíamos em Fernando de Noronha. E como nos perdemos... Mas não vem ao caso agora. Estava... No tapete, sim... No tapete. Manhã de 05 de junho de 1999, acordamos pela primeira vez em nossa casa. No quarto, apenas o colchão e uma arara para pendurarmos as roupas. Havia também, ao pé do colchão, uma bandeja com quase nada do que sobrara do delicioso café que recebi na cama. (Ah! Como queria que a emoção do amor que em mim vivia se repetisse a todo dia...). alguns beijinhos mais e já estava pegando minha bolsa para, rumo à loja, comprarmos o tapete de que tanto tínhamos gostado. A loja ficou de entregar na manhã mesma da compra, afinal, eram apenas dois quarteirões. E assim que saímos, os entregadores saíram também.
Cru. Sua cor: cru e sua textura felpuda. Muito felpudo. Macio. Pisávamos em nuvens. E nelas também nos amamos. Sim, foi uma estréia e tanto! Não a imaginaria depois da noite passada, mas o amor nos revela e surpreende. Acho que o eco da sala nos inspirava! Inesquecível este tapete. Não vou dizer que todos os outros, sofás, bar, bancos, mesas e cadeiras, foram assim estreados, até porque meus amigos depois de aqui o lerem talvez se sentissem constrangidos, pra não dizer pior! Mas o tapete eu digo, significa para mim todo aquele amor do inicio, toda aquela emoção que gostaria que se repetisse e não se repetiu.
O Miró também era especial. Pra dizer a verdade, não era um autentico quadro dele, mas a todos que assim exclamavam respondíamos com um silêncio sucedido por um leve sorriso, quase que em consentimento. Porém, não o dizíamos e assim não o mentíamos. O quadro era tão importante para nos que a sua história apenas nos pertencia. Foi um trabalho em conjunto, à quatro mãos. Durante um fim de semana, apenas naquele, pintamos e nos pintamos. Uma dessas experiências “divinas” que presenteamos, um ao outro; Talvez tenha sido o dia de maior união, onde corpo e alma se harmonizam, e neste caso: eu com ele, ele comigo. Na hora de assinarmos o quadro, decidimos que ficaria muito grande e feio escrever Anita/Fernando, e como numa brincadeira assinamos Miró. Como rimos! E como riamos da bestidão das pessoas diante do nosso quadro. Ele ficava na sala, numa das paredes que faziam parte da paisagem nas refeições. Nosso “Miró” me trazia a harmonia daquele dia, e sempre me fazia bem olhá-lo.
Na caixa, ao lado de “Miró”, estão também alguns livros e LP´s, sem muita história... Alguns projetos de trabalho e um laptop. A câmera fotográfica fica, a filmadora e os cd´s também. Assim como os moveis e todo o resto que não pus na caixa. Não quero conviver com a lembrança do que perdemos. Para isso já bastam o quadro e o tapete!
Ainda sinto o cheiro do morango. Mas isto foi na briga. Em meio a tantas palavras ladeadas de espinhos e olhares de flechas afiadas, o copo virou, manchando de vermelho nosso felpudo tapete cru.
Decidi levar o tapete, símbolo do nosso amor, e agora, em vermelho, símbolo de seu fim. Sim, o tapete era uma narrativa, em que eram evidentes apenas o inicio e o fim, deixando o meio presente apenas nas lembranças.
Quanto à mancha, decidi por deixá-la. Digamos que é arte-pop e que ao lado de “Miró” ninguém vai estranhar.
Tenho que comprar um microondas, uma geladeira, um colchão e uma vitrola. Tenho também que reaprender a ser apenas eu novamente. Como será não ter com que falar ao acordar? Como será voltar a dormir depois de um pesadelo?
Tento relembrar a sensação da paixão do inicio. Não consigo.
Tento respirar fundo, também em vão.
Tento relaxar no tapete felpudo e um pouco dormir, só.
Fecho os olhos ao sentir os felpos tocarem meu rosto. Penso sentir o cheiro daquele dia. Penso ter sido tudo um sonho. Mas não. O cheiro do morango me traz de volta. Maldita mancha!
O ranger da porta faz meus olhos abrirem. Fernando entra trazendo em seu colo o que ele disse uma aventura, o que eu disse fruto. Era o seu filho. Delicadamente repousam no chão pezinhos que mal se sustentam em pé. Ele cai diante de mim, repousa a pequena mão no meu braço e sorri.

Nenhum comentário: