1 de dez. de 2007

Cheiros de Infância II

Por Viviane Roux
(texto modificado a partir do original de Flavia Risi)


"Era uma criança palestina. E não era fácil ser uma criança palestina. Minha infância teve cheiro de pólvora, de grito, de sangue.


(Foi mais tarde. Tenha paciência)


Final de 1959. Papai costumava dizer que naquele ano nasceram seus dois filhos. Por algum tempo me perguntei onde estaria meu irmão. Por vezes até o procurei. Quando o questionava, papai apenas sorria, despejando em mim a baforada de fumaça.
Logo o tempo se passou e eu ganhei o que vocês chamariam de padrinho. Não era oficialmente, mas era evidente. E quando se tem Abujihad como “padrinho” e Yasser Arafat como pai, a infância necessariamente cheira a pólvora, grito e sangue."
Nunca recebi um abraço ou qualquer demonstração de carinho por quem quer que seja. Sempre rodeado de pessoas. Jamais relaxavam, sempre alertas. Falavam bastante.
Há muito já desistira de achar meu irmão (mas sabia que estava logo ali, bem debaixo do meu nariz). Algumas coisas são como são. Não tinha nada a fazer. O homem que aceita sua condição e não luta para muda-la, visto que esta é estanque, certamente será feliz. Tentei por muito tempo me conformar. Um dia consegui.
Foram poucas as vezes que papai olhou pra mim antes daquilo. O admirava, gostaria que ele sentisse orgulho de mim (tal como seu outro filho). Para mim não sobrava muito, aliás, quase nada.
À medida que o tempo passava, novas mágoas se uniam as antigas. Raiva. Ódio. De quem seria a culpa?
Tive que me render. Faria meu pai feliz, precisava disso. E de certa forma, tudo mudou depois daquela festa. A casa estava cheia – talvez com mais homens esquisitos do que convidados. Não sei se já havia visto uma de perto antes, mas foi neste aniversário que com certeza vi a primeira arma. Papai deixou que eu a tocasse. Não por acaso ele fez isso, tinha planos e eu ainda não sabia.
Agora, passava mais tempo com ele. Fui ficando importante, respeitado. Apesar de ser tão jovem.
Dez anos. Uma arma. Algumas balas. O cheiro de pólvora. Um tiro. Minhas pernas bambas. Gritos. O amparo daquela mãe a um corpo já morto. O sangue no chão. O sangue na mãe. O cano da arma quente. Os olhos de papai orgulhosos. Uma causa.
Prazer inenarrável. Naquele tiro exorcizei meus demônios. Me juntei a eles. Derramei uma única lágrima, a última de minha vida. Aquela morte levou qualquer sentimento que eu ainda carregava comigo. Frio. Resignado.
Cada um se torna aquilo que é para o que nasce. Eu nasci para ferir. Cumpri meu papel. Cumpro meu papel. E não nego que às vezes gosto dele.
Foi assim a infância toda.
Talvez ainda hoje.

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