16 de jun. de 2010

Uma voz chamando meu nome

Por Júlia Câmara

Ela quis parar para comer crepe de chocolate. Pedi um de avelã. Rememorei que, em maio de 1968, numa daquelas esquinas proféticas de Paris, o filósofo Jean-Paul Sartre discursara, no auge do fervor, a favor da revolução e de uma existência mais humana. Houve um instante de emoção entre nós com a lembrança repentina de Sartre. Ela enxugou os olhos e disse que mataria a aula de tarde para me conhecer melhor. Fiquei em estado de choque, jamais imaginei que aquela menina, dos olhos amendoados e traços tão bem delineados pudesse sequer olhar para mim. E hoje ali estava ela, por alguma ironia do destino, pairada em minha frente. Nenhuma manhã de inverno jamais pareceu tão perfeita. Seu cheiro adocicado penetrava minhas narinas, e me fazia sorrir. Eu podia sentir cada um dos músculos do meu rosto se movimentando, a cada gesto dela. Claire olhou seu relógio e se levantou rapidamente dizendo que estava atrasada. Ela me esperaria às duas da tarde na esquina que ficava entre nossos colégios. Sinceramente, eu não conseguia assimilar os acontecimentos daquela manhã. Vivi momentos que simplesmente foram inacreditáveis. Salvei Claire, a menina dos meus mais profundos sonhos, de um grave acidente. E passei mais de uma hora observando seus olhos, brilhantes, agradecendo-me por tal feito. Pura coincidência, ou seria sorte? Eu meramente estava no lugar certo, no instante certo. Paguei a conta e em seguida comecei a caminhar lentamente em direção ao meu colégio. Faltava uma hora para o início da aula de Literatura do professor Henry. Todavia eu precisava chegar um pouco antes, necessitava contar tudo o que aconteceu naquela manhã. Desde a morte do meu pai, Henry se tornara o melhor amigo que alguém podia ter. Estava sempre de prontidão para me escutar e me dar os conselhos necessários para erguer a cabeça e seguir em frente. Quando cheguei ele estava conversando com um aluno do segundo ano. Me viu, acenou e pediu para esperar no sofá. Dez minutos se passaram e Henry apareceu, sorridente e bem humorado como todos os dias. Me ofereceu alguns biscoitos e em seguida perguntou o que me trazia ali mais cedo do que o normal. As borboletas no meu estômago começaram a rodopiar novamente, só ao mencionar aqueles momentos. Eu narrava os acontecimentos com uma abundância de detalhes e assim ia revivendo cada instante dentro da minha cabeça. Quando acabei de relatar, instantaneamente, senti meus músculos imóveis uma vez mais. Henry sorria intensamente para mim. Ele sabia o que eu sentia por Claire desde o primeiro momento em que a vi, alguns meses atrás. As poesias, que escrevi para ela quando a admirava na saída do colégio, estavam guardadas com ele. Um professor de Literatura sempre aprecia poesias, não? Esse era o único motivo plausível pra o desejo dele de guardá-las. Porém ele insistia em dizer que algum dia eu iria precisar daqueles pedaços de papéis, afirmava que teriam um valor muito significativo no futuro. Segundo ele, o destino e o acaso colocariam aquela bela menina dos cabelos cor de mel em meu caminho. Ela parecia tão inalcançável para mim, que eu costumava achar graça quando ele declarava tal asneira. No entanto hoje tudo, finalmente, parecia fazer sentido. Henry me deu alguns conselhos e desejou-me boa sorte. Abracei-o forte e agradeci por todas as coisas que estava fazendo para me ajudar. As horas demoravam para passar. Cada minuto parecia uma eternidade. Depois de muito ansiar pela hora de ir embora, o professor finalizou a aula e nos dispensou. Passei velozmente no banheiro. Olhei meu semblante no espelho, ajeitei um pouco meu cabelo que estava sempre bagunçado e dei um sorrisinho sem graça e nervoso. Saí pela porta lateral e passei no jardim. As flores não estavam muito bonitas, porém havia uma que reluzia no meio de todas as outras que encontravam-se sem cor. Arranquei a flor mais bela e de longe pude sentir seu perfume. Caminhei ofegante e nervoso em direção à esquina onde ela me esperaria. Eu estava dez minutos adiantado quando cheguei. Apoiei meu peso em um muro de um prédio ao passo que tentava parar de pensar, mas tudo o que se passava no meu subconsciente era mais forte do que qualquer uma das minhas vontades racionais. Meu coração palpitava rapidamente, parecia que estava prestes a explodir dentro do meu peito. Minha boca estava seca e meu corpo suava frio. Era tão difícil me conter, mas eu precisava, não podia parecer um tolo. Vinte minutos se passaram e ela não aparecia. Meia hora e nada. O desespero começou a dominar cada célula do meu corpo e em seguida fui tomado por uma tristeza profunda. No momento em que finalmente aceitei que ela não iria aparecer, comecei a me culpar por ter acreditado no destino. Ele nunca tinha movimentado nada a meu favor, porque isso iria acontecer justamente naquele momento? Abaixei a cabeça e virei as costas. Nesse segundo escutei uma voz chamando meu nome e me virei. Era ela, correndo e sorrindo do outro lado da calçada. Podia traduzir o movimento dos seus lábios me pedindo desculpas. Ela se aproximou e parou exatamente na minha frente. Doce e sorridente. Me deu um beijo estalado na bochecha. Senti meu rosto corar e fiz o impossível para que ela não percebesse isso. Entreguei a flor e ela agradeceu, gaguejando um pouco, sem saber o que fazer. Quando percebi, estávamos caminhando perto do Jardim Botânico, então como era um dos meus lugares preferidos, perguntei se ela gostaria de ir comigo. Ela afirmou que sim com a cabeça e abriu um sorriso maravilhosamente perfeito, depois disse que era um dos lugares que mais gostava de ir também. Claire não parava de falar, sentia que ela estava um pouco envergonhada, mas que sabia lidar com isso ao passo que não parava de me fazer perguntas. Pude perceber que ela gostava da minha companhia e se sentia confortável comigo. Assim que chegamos na parte mais bonita do lugar, meu lugar preferido em todo o mundo, peguei-a pelas mãos e tomei a direção do lago. Chegamos perto da beira e me sentei na grama, ela fez o mesmo. Nossas conversas eram tão boas e divertidas, parecia que já nos conhecíamos há algum tempo. Eu não conseguia parar de sorrir para ela. Meus músculos do rosto já estavam dormentes, não sentia mais nada, além de felicidade. Ela me agradecia quase a todo instante pelo feito da manhã e disse que ter me conhecido, além do fato de salvar a vida dela, foi uma das melhores coisas que podia ter acontecido naquele momento em sua vida. Eu concordei com tudo o que ela falava e ela sempre sorria. De repente ela se levantou e sentou bem perto de mim, quando começou a se aproximar eu não sabia como agir. Só pude sentir o que estava acontecendo quando seus lábios aveludados encostaram nos meus. Eu sorri e suspirei profundamente. Meu corpo estava petrificado e todos os meus sentidos falhando. Ela sorriu sem jeito e encostou sua cabeça em meu peito. Três horas se passaram e ali estávamos, conversando e nos conhecendo. A coisa que eu mais fazia, além de gaguejar algumas vezes seguidas, era sorrir. De repente, um pouco assustada, ela olhou o relógio e disse com tristeza que estava na hora de ir. Eu concordei e disse que a levaria em casa. Andamos por mais ou menos vinte minutos. Quando chegamos na porta já estava anoitecendo, eu podia ver a lua um pouco escondida entre as nuvens iluminando o céu. Ela me olhou por alguns instantes imóvel e perguntou quando iríamos nos ver de novo. Eu disse que no dia seguinte a estaria esperando no mesmo lugar, pois tinha algo que a pertencia há algum tempo e estava na hora de entregar. Ela não entendeu nada e obviamente ficou curiosa, mas prometeu que esperaria até o dia seguinte. Por alguns intermináveis instantes fiquei sem saber como agir. Fiz movimentos um pouco atrapalhados e me aproximei para me despedir com um beijo estalado nos lábios. Acho que a partir desse dia começou a ser traçada uma bela história de amor, que duraria muitos anos. Finalmente as poesias, que durante um bom tempo, estiveram tão bem guardadas, teriam seu destino certo.

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