9 de jun. de 2010

Diante de mim, a procuradora

Por Fernanda Pôrto


Coagida e alerta. A mulher da ação cumprimentou-me polidamente. A procuradora olhou-me inquieta. Gaguejou. Argumentou que há muita mentira envolvida, que alguns a invejavam e estavam tentando prejudicá-la ferozmente. Engraçado. O comentário não mencionou a criança. Não ouvi nada no sentido de: “eu jamais faria isso, é a minha filha!”. A ausência da preocupação de quem conhece o amor e a capacidade de amar soou como um veredicto. Vera Lúcia só conhecia o sentimento de posse. A menina era mais um animal em meio ao zoológico daquele “lar”: teto e alimento já deveriam ser suficientes.

Para as crianças e para quem já foi uma delas, aquela mulher se configurou como a bruxa dos contos infantis. O extremo oposto da maternidade. O maior pesadelo de quem apenas engatinha no breu da hostilidade.Questionei os ferimentos, as ofensas, a noção de cuidado e a adoção. Quis saber se fosse o caso de um filho biológico a situação se repetiria. Ela só balançava a cabeça negativamente até soltar: “é tudo mentira, rapaz, você não conhece essa gente”. Queimou mais uma vez não ouvir lembranças da menina. Fui além e indaguei sobre o seu passado; e se tivesse sido ela a criança agredida? “Meu filho, não se trata disso”. Realmente. A procuradora acusada tinha razão. Tratamos aqui de crueldade. De doença social. De falência.

Fui até Bangu buscando neutralidade. Saí deprimido. Temi por todos os prisioneiros do ciclo da violência. Compreendi, finalmente, o que é a fome de consumir uma vida. Vera Lúcia se nutre de desespero, de desamparo, de ausência de esperança, de tortura. Ela precisa arruinar ao fim e ao cabo para se sentir gente. Ser o que é só faz sentido quando há cabeças servindo de tapeçaria.

Fracassei como repórter. Não pude tomar um punhado de perguntas e projetá-las à minha interlocutora. Finalizei antecipadamente, agradeci à carceragem e à detenta. Não deixei minhas humanidades de fora. Não quis culpar, mas também não houve como me abster. Estava ressentido e resignado em minha atitude. Usei o abandono como arma de defesa. E lembrei que ela usava como de ataque.

Pensei em como estar ali parecia uma cena de cinema. Percebi a nossa situação e a realização plástica de uma mídia escorregadia. Os interesses que rodeavam essa mulher talvez não fossem tão dignos. A profissão clamou mas eu também me levei até lá. Os limites humanos da convivência foram, em dado momento, extrapolados por Vera Lúcia e aquilo soava muito maior que uma matéria e do que um esforço de remarcar a vilania.

Maldade e loucura são sempre confundidas. É difícil mensurar a inabilidade de alguns para apreender os limites do outro. Os atos dela tocam na ferida aberta em muitos círculos: o abandono dos pais implica em uma responsabilidade do abandonado. O que levou essa mulher à justiça materializou a violência de entender a si como absolutamente suficiente. Os ataques à criança evidenciam a potência máxima do egoísmo, da incapacidade de se relacionar e da ausência de sentimentos moduladores.

Caráter, doença, moralidade, direito humanos, crime, agressão: terminologias vinculadas ao personagem que conseguiu ultrapassar via tortura o peso de ser um assassino. Fazer sofrer, minar o florescer mais puro de alguém que já veio ao mundo como algo profundamente indesejado, dar as costas, negar o reconhecimento mínimo do respeito. Vera Lúcia personificou e colocou em prática os elementos que definem o lavar as mãos de cada dia. E foi uma vilã completa e vencedora de sua empreitada. Polemizou _ ainda mais _ a adoção, atrasou famílias de se completarem, fortaleceu e semeou o sentimento de tantas crianças de não serem o bastante.

Ninguém entende, todos perguntam: por quê?

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