9 de jun. de 2010

O Del-Rey 87

Por Letícia Rossignoli



Fecho a porta. Escuto passos nas escadas, desço correndo. “Talvez dê tempo de alcançá-lo”, penso eu. Quando chego à rua o vejo entrando no carro, o seu Del-Rey ano 87. Ele entra não olha pra trás e eu faço força para ir ao seu encontro, minhas bochechas tremem quando corro e fico repetindo com uma voz fraca e sôfrega: “Espera, espera”. Ele bate a porta com força, arruma o retrovisor, não sei se ele conseguiu me ver correndo ao seu encontro e dá a partida. Foi tão brusca, os pneus cantaram e subiu uma fumaça. Fiquei ali, no meio da nuvem cinzenta esperando que quando a fumaça se dissipasse eu pudesse vê-lo e mesmo nesse momento havia um fio de esperando no meu coração de que ele tinha se arrependido, que não mais ia embora e que era mentira tudo o que dissera quanto ao adeus.

Ouvi passos correndo atrás de mim e depois senti braços que cruzavam em meu peito. Era mamãe. Ficou abraçada comigo me fazendo companhia em uma hora em que mesmo se todos do mundo se importassem com a minha presença eu não ligaria, pois o foco era papai. E ele tinha ido embora. Ela chora muito e me deu a mão para entrarmos.

- Para onde foi o papai?
- Foi embora.

Não quis perguntar mais, não ia adiantar. Mamãe também não sabia para onde ele tinha ido. A partir desse dia, eu sempre me posicionava na janela de casa e ficava esperando a hora de papai voltar. Da janela do apartamento eu via a todos como formigas, bem pequenininhos. Mas papai eu sei que ia reconhecer: sua barba espessa, sua jaqueta desbotada, suas botinas e a fumaça de seu Del-Rey eram únicos para mim.

Passaram anos e eu não mais fiquei na janela. Mas toda vez que eu chegava perto da janela me lembrava dos resquícios que ficaram em minhas lembranças. Percebi que, na verdade, eu sempre soubera que ele não voltaria, mas era preciso que eu não me esquecesse de papai, não esquecer da sua face, dos seus contornos, voz, jeito. E aquele encontro na janela todos os dias era a única forma de deixar a memória viva dentro de mim. Suas fotos, roupas, utensílios, nada disso me deixava perto dele. Só as minhas lembranças restauravam a minha paternidade.

Aprendi a não usar mais a janela para me encontrar com papai. E apesar de eu não mais insistir em amá-lo, percebo que a lacuna deixada solicita esse encontro marcado entre eu e a única herança que papai deixou: suas lembranças. E não me refreio em nome de algum orgulho próprio, simplesmente digo: “Vem, Papai. Vamos nos encontrar.”

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